Pequena Sabatina ao Artista

Por Hilton Valeriano

 

Desde as xilogravuras medievais até as famosas iluminuras, o desenho sempre esteve presente na história da arte. O leitor poderia ser levado a pensar o ofício do desenho como uma forma periférica de uma suposta manifestação artística secundária, visto a predominância da pintura, mas nomes como Albrecht Dürer, Gustave Doré, M. C. Escher e Oswaldo Goeldi evidenciam o equívoco dessa perspectiva.

Rui Cavaleiro Azevedo, artista português de Lisboa, em nossa Sabatina, expressa suas opiniões sobre a arte e o ofício do desenho, sua importância estética, suas relações com a literatura, seus projetos futuros. O leitor é convidado a mergulhar no universo expressionista e humanista desse artista, a discorrer sobre a vivência estética de seu olhar, de suas cenas, sejam elas urbanas, naturais ou literárias.

Rui Cavaleiro / Foto: Elsa Vecino

DA – De que forma se deu sua experiência inicial com a arte do desenho?

RUI CAVALEIRO – Durante os meus estudos, em menino e adolescente, eu era incluído entre aqueles que “não têm jeito para o desenho”. Efetivamente, considero que não fui dotado com qualquer prenda divina, nem para desenhar nem para nada mais, e acho que desenho pior que a média das pessoas. Em menino e jovem, os meus desenhos decorativos e geométricos eram invariavelmente sujos, torcidos e distorcidos. Quando o trabalho parecia finalizado e a régua deslizava pelo papel e deixava atrás dela o rastro de tinta da china borrando o desenho, eu tinha a consciência da minha nulidade no mundo da Arte. Por dificuldade visual, ainda hoje não vejo a perspectiva.

Contudo, passava as tardes em casa desenhando personagens e paisagens inabituais, com lápis de cor e manchas de aquarela, copiando livros de comics.

Tenho na memória, mas talvez seja um sonho, que um dia um professor me disse que se eu quisesse candidatar-me a Belas Artes, ele me ajudaria a preparar o exame. Devo ter sonhado. Além disso, por esse tempo já tinha feito exame para entrar em agronomia.

DA – Como você vê o papel do desenho e sua relevância histórica no campo da arte?

RUI CAVALEIRO – O desenho foi uma das primeiras formas de expressão dos homens. Nas paredes das cavernas, na areia, na argila. Seria para representar a realidade do modo que o desenhista a via, para esconjurar medos e fobias, para contar os acontecimentos ocorridos.  Antes da fotografia, o desenho era, para os biólogos, o modo de registrar objetos e seres dignos de nota. Para os arquitetos e cenógrafos, é o modo de organizar o espaço e a realidade de determinada maneira. Para outros, será um modo de tomar notas ou ainda de distrair a mente, como, por exemplo, desenhar flores durante as reuniões profissionais.

Almada Negreiros, um grande artista português que já não se encontra entre os vivos, disse que o desenho é o nosso entendimento a captar o instante.

Agora, uma confidência. Tentei várias vezes fazer pintura. Segui cursos em Academias em Bruxelas, experimentei várias técnicas, fiz quadros abstratos, realistas, tentei reproduzir os meus pequenos desenhos em grandes telas brancas e virgens. O resultado foi sempre desastroso. Eram quadros simplesmente horríveis. O fato de não dispor da liberdade para apagar, alterar, desenhar por cima, rasgar, faz com que a pintura não seja um modo de expressão adequado para mim.

DA – Mesmo nas cenas naturais ou urbanas, seu traço expressa um olhar que busca a paisagem como dimensão cultural, ou seja, uma vivência humana da perspectiva criadora do artista. Comente esse aspecto de seus desenhos.

RUI CAVALEIRO – Os meus desenhos estão ancorados à realidade. Pode ser uma paisagem, uma pessoa a dormir na praia, uma cena de uma velha fotografia, um cão a brincar. São imagens de outras imagens. É fácil verificar que muitos dos meus desenhos são cópias, reproduções, plágio (!) de outras obras. Parasito, assim, o trabalho de outros criadores.  Contudo, gosto de ser um intérprete da cena, mais do que um observador. Que emoções estão a experimentar os personagens, mesmo sendo eles animais? Esse é um ponto interessante para mim. Se tudo está ligado no universo, se podemos sentir em São Paulo os efeitos de um bater de asas de borboleta, em Lisboa, então, os elementos desenhados numa folha de papel também devem estar relacionados entre eles, com o passado, com o futuro, com o que está fora da folha de papel mas nela está sugerido.

DA – A arte do desenho e a literatura possuem uma longa história. Você tem expressado sua arte também com figuras de escritores e personagens literários, mantendo a relação desenho e literatura.

RUI CAVALEIRO – Esses desenhos são uma simples porta para entrar no Universo do escritor: podem ser uma ilustração da sua obra, como aqueles romances ilustrados do Júlio Verne ou do Alexandre Dumas, que enchiam a adolescência. Eu via o desenho e ia à procura do texto relativo a ele. Ou pode ser a resposta à pergunta: que pensava o criador quando escrevia aquelas ideias, que emoções experimentava ele? A literatura e a poesia são, assim, uma fonte inesgotável para os meus desenhos. Como diria o Mestre Almada Negreiros, limito-me à captação de instantes já passados.

DA – Muitos de seus desenhos expressam no plano figurativo a dimensão estética de poemas de diversos autores. Como é criar um desenho a partir de um poema?

RUI CAVALEIRO – É como entrar no poema e passar para o outro lado. Uma vez mais, é captar, numa folha de papel parecida com outra em que o poeta escreveu o poema, o instante em que o poeta o escreveu. Mas não esqueçamos que, como diz Pessoa, o poeta é um fingidor. Então, o desenho tem que ir além do poema, além do poeta. O desenho pode responder às perguntas: que acontecimento fez com que o poeta escrevesse isto?,  Estaria a chover no dia em que ele escreveu o poema? Estaria ele a falar a sério ou, mais uma vez, a fingir?.

DA – Qual foi a inspiração para a série de desenhos intitulada maternidade? O que você busca como artista ao expressar o nu feminino em seu momento progenitor?

RUI CAVALEIRO – Para o desenhista, o corpo humano é o princípio de tudo, a principal matéria-prima. Na pré-história, desenhavam mulheres grávidas seguramente para compreender o mistério da fertilidade, para agradecer aos deuses o fato da mulher ter engravidado, para assegurar que o nascimento fosse feliz.  É maravilhoso para um desenhista ter como modelo uma mulher grávida, observar as mudanças diárias, do corpo, da pele, imaginar as mudanças do pequeno ser que ela transporta dentro. Sente-se bem? Estará a dormir? O desenhista tem, assim, dois modelos num só e, ainda como brinde, a estória da criação do bebê pelo progenitor, ausente/presente na folha de papel. 

 

Desenho: Rui Cavaleiro

 

DA – Comente sobre a cena artística e os espaços para divulgação de arte em Lisboa.

RUI CAVALEIRO – Confesso que não estou muito metido nos circuitos artísticos lisboetas. Sei que a crise econômica, social, de valores que a Europa está vivendo deixa marcas na produção e comércio da arte em Portugal. O boom criativo e a especulação no mercado da arte terminaram.

Em Bruxelas era diferente. Tenho saudades das pequenas galerias, livrarias de ilustração e banda desenhada, onde ouvia jovens artistas discutirem projetos e outros a explicar os guiões das suas próximas obras. Em Lisboa, nunca consegui apanhar esse ambiente. Porventura, uma dificuldade minha.

Creio que as atuais condições sociais na Velha Europa são o adubo para novas expressões artísticas. As novas tecnologias digitais são um ótimo e eficaz instrumento, mas os grafitis nas paredes das cidades também.

DA – Acredita que, no sentido da originalidade, a ideia de aura do objeto artístico passou a ser uma utopia em nossos tempos? 

RUI CAVALEIRO – A originalidade da obra de arte continuará a ser uma exigência imposta aos artistas e o seu exercício de busca permanente. A tecnologia trouxe uma nova dinâmica para a criação artística. Depois, há um aspecto fundamental: as novas tecnologias e a agenda digital permitem ao artista contemporâneo uma experiência global de diálogo e interação com o público. Os jovens artistas aprofundam a relação entre Arte e Tecnologia, de modo a refletir e a fazer-nos refletir sobre as transformações desencadeadas na sociedade e as possibilidades de socialização dos processos artísticos. Isto é magnífico.

Todos os componentes clássicos da Arte continuam presentes, sejam eles estéticos, sociológicos, morais, religiosos, mercantis, pedagógicos. E as funções mágicas e rituais da Arte continuarão igualmente a poder ser cumpridas.

DA – Há muitos espaços de convergência a serem preenchidos através do papel da crítica de arte?

RUI CAVALEIRO – Veremos o que vai acontecer nos próximos tempos. A realidade mostra que grande parte da imprensa de arte que nos últimos anos constituía uma referência na literatura, pintura, fotografia etc., está a perder público, importância e influência. Isto é fruto de vários fatores, nomeadamente da crise nas vendas da imprensa escrita. Não podemos esquecer que os grandes grupos de mídia são propriedade de grandes grupos econômicos transnacionais, todos eles com uma estratégia global. Onde enquadrar aí os críticos independentes que examinam, comparam, enquadram, opinam e doutrinam? É complicado.

Têm que ser encontrados outros espaços, talvez cyber, com os quais as pessoas se identifiquem e colaborem interativamente, gerando ideias e movimentos novos.

Os críticos, como os filósofos, são fundamentais para indicar os vários caminhos que podemos escolher e percorrer…

DA – Vislumbra algum projeto artístico futuro?

RUI CAVALEIRO – Não tenho projetos concretos. Tenho, já prontos ou em esboço, três pequenos livros de ilustração que, porventura, um dia editarei se encontrar editor. Um deles tem o título de “O cabeleireiro de macacos”. Tenho sempre a vontade de ilustrar estórias de outros autores de quem eu me considere cúmplice. Veremos.

Rui Cavaleiro / Foto: Elsa Vecino

 

(Hilton Valeriano é professor de filosofia. Edita o blog Poesia Diversa)

 

 

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