Janela Poética I

Luciana Marinho

 

Foto: Tomás Casares

 

à margem do caminho

 

vieram de onde o tempo é aragem funda nos olhos.
trouxeram o despenhadeiro ao fim dos pés.
a luz os percorreu e pôs, em suas bocas,
rios afundados em vozes, amuletos.

a terra sangrou os confins de seus corpos,
suas mãos peregrinas dos sargaços de um vento.

 

 

***

 

 

linha do tiro

 

ela caminha na linha do tiro.
sete anos de pesadelos escoados pelo corpo.
ata o ar, com arame, aos fossos de seu vestido.

martelo de pele e cartilagem,
o tempo a trai quando não a envelhece.

ao largo do sorvedouro,
ela resta antiga.

 

 

***

 

 

matéria bruta

 

no fundo das mãos há o ponto cego
em que ninguém pode tocar.
por onde passa a corda usada pelos presos
para a fuga.

posso começar pelo fosso.
pela sombra em que éramos a vertigem do pai.
a luz golpeada nos pés ao nascer.
ao nascer
e não estar na vida.

a água toma o fôlego restante dos dias.

 

 

***

 

 

uma só terra

 

desce-me como uma sede
a réstia do que sou, amortecida, fundida em pedra.
dálias ladeiam os vergões do corpo,
as frestas da casa na abertura dos olhos.
há uma voz que não pronuncia o dia seguinte.
água de minhas mãos
despenhadeiro rodeando
meu pescoço.

 

 

***

 

 

houvera

 

o tempo não se lembra de nós
nem os girassóis nos conhecem mais.
a nossa mão é uma lenda para o fogo
a água
o ar
a terra que não mais nos habita.

desde que as asas morreram no pulmão dos homens,
a esperança migrou para a placenta dos rios
onde seres se curvam às suas fontes
de calcário, erva, peixe, nuvem.

 

Luciana Marinho nasceu em Recife, onde atua como professora universitária e psicóloga clínica. Participou da antologia “Desvio para o vermelho: treze poetas brasileiros contemporâneos” (2012), organizada por Marceli Andresa Becker, em uma produção do Centro Cultural São Paulo.

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4 Comentários

  1. Leila e Fabrício,

    Grata pelo belo e tão cuidado espaço no qual tenho a satisfação de encontrar meus poemas. A seleção das poesias e a edição da revista não poderiam ser melhores. A Diversos Afins sempre surpreendendo e encantando. Parabéns pela acuidade!

    Abraço!

  2. Adoráveis, delicadas, sensíveis, palpitantes, cintilantes, intrigantes, intensas e suaves as letras e os significantes que compõem a poesia de Luciana Marinho. Alma rara, olhar raro, coração raro, como são raros alguns seres que vem passear neste planeta. Beijos alados e luz para nosso mundo.

  3. Excelente poesia. Nestes 5 poemas não encontrei nenhum ponto que pudesse apontar como fraco, o que é impressionante como fato. A poesia completamente madura, consistente, forte e de altíssima qualidade.

  4. Qualquer coisa que o diga não acrescentaria mais sombras ou luzes à magnífica palavra poética. Aqui se apreende o significado de novos sentidos, que se conjugam e se fundem em matéria poética.

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