Aperitivo da Palavra II

Nunca fomos melhores

Por Fabrício Brandão

O herói está de folga

Em tempos de alguma pungente desesperança, redentores são figuras cada vez mais escassas. Para desejar que tais seres existam e assumam devidamente uma função entre nós é preciso sentir o peso de um incômodo maior que nos acomete. Entre um arremate e outro, ter fôlego para respirar significa tencionar caminhos entre luz e sombra. Assim, a quem poderia interessar a existência de heróis? Ao nosso medo de lidar com as investidas indecifráveis da vida? A uma velha necessidade de delegarmos coragem a alguém que está fora de nós?

É interessante refletir um pouco sobre tamanhas questões após a leitura do mais novo livro de Dênisson Padilha Filho. Prontamente, o título já nos toma de assalto: O Herói está de folga. Publicado pela Editora Kalango, a obra reúne nove contos que perpassam cenários compatíveis com as indagações feitas no parágrafo inicial desse texto. A primeira história já é por si só um abre alas para os territórios que iremos cruzar. Batizada de Com essas mãos, a narrativa inicial nos fala da pesada sina de um matador de encomenda (espécie de justiceiro, se assim é possível considerar), cujo peso maior está na maneira como o personagem lida com o inventário das vidas que ceifou.  Admirado por uns e temido por outros, o assassino confronta seus fantasmas, contabilizando as mortes promovidas num ritual de incessante sensação de culpa.

Dênisson não faz do assassino de seu primeiro conto um alguém a simplesmente purgar pecados. Os dramas e fardos são os piores, os da consciência, mas a maneira como esses processos mentais são conduzidos faz-nos pensar que ninguém passa impune pela vida, de um jeito ou de outro. A, digamos assim, humanização de um protagonista aparentemente execrável dá-se muito mais na via de um resgate do que pela assunção dos erros.

Eis que é preciso fôlego para tocar a leitura adiante. Parafraseando o autor, todos vamos bem até a hora em que começamos a desejar demais. Mas o fato é que é inegável não querer ir além, dada a proposta da obra, sobretudo porque no entremear das narrativas abriga-se uma intangível pretensão de reconhecermo-nos desnudos e sós. A sensação de desamparo instaurada é, no caso das escrituras de Dênisson, uma provocação ao status quo de nossos ocidentalizados sentimentos.

Quem protagoniza as ambientações do conto Onde demora aquele fogo dos teus olhos? pode, por exemplo, ser qualquer mortal cujas percepções estão à flor da pele.  Ali, reconhecer-se um homem comum é gesto que implica muito mais no saldo numeroso das desventuras, um olhar o compasso dos dias com o filtro polarizador da apatia. Assim, quiçá a projeção de um tempo ideal retido na memória se configure um antídoto ao caos intimista de um alguém que é tudo, menos herói.

Dênisson Padilha Filho é hábil em colocar seus personagens no olho do furacão. Dali, eles só podem escapar se lançarem mão de algo semelhante a uma espécie de expansão do tempo, o que fatalmente não acusa um sentido tradicional de libertação. Pelo contrário, a via da inexistência de mártires adotada pelo autor recusa saídas honrosas e meritórias. Por tal razão, a desgastada dicotomia entre bem e mal sequer importa. Subsiste uma dimensão na qual a reinvenção da memória parece ser substancial válvula de escape.

Em A pin up que caiu do céu, a capacidade do criador de modelar os recursos da fantasia humana é, sem dúvida, um elemento de destaque. A figura do vaqueiro Miquéias é símbolo do vigor de um imaginário bem típico dos rincões brasileiros. Para dotá-lo de um componente diferenciado, Dênisson flerta com o realismo fantástico. Reinventando-se, Miquéias busca refúgio noutras dimensões, conferindo ao seu desejo algum caráter de salvação.

Não é de agora que o autor de O herói está de folga sabe amarrar cenários e construções de personagens com destacável domínio. Exemplo disso está nos contos e novelas presentes em Menelau e os homens (Ed. Casarão do Verbo, 2012). Dentro desse controle narrativo, há muito mais do que saber contar uma história. Seres e lugares estão amalgamados por uma perspectiva de cronologia interna, através da qual as histórias resultam num elemento orgânico e equilibrado.

Em se tratando de percorrer as complexas paragens humanas, não há nada mais apropriado do que reconhecer aquilo que somos. Talvez por isso Dênisson ouse nos mostrar trajetórias de vida marcadas pelo traço lancinante da imperfeição. Já contabilizamos milhares de anos sob o planeta e, no entanto, resta sempre a indagação sobre o que pretendemos de nós mesmos. Não há saída. O incômodo está conosco até os ossos. De que adiantam heróis se debaixo do sol tudo está feito?

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3 Comentários

  1. … E não há nada de novo sob o sol, já dizia o velho Salomão. Me lembrei disso por causa de sua fala

    “De que adiantam heróis se debaixo do sol tudo está feito?”

    Dá logo vontade de ler o livro somente pelos traços apresentados aqui.

    Abraços

  2. Fabrício, parabéns! O texto despertou AINDA MAIS o desejo – que já havia – de ler a obra desse nosso contemporâneo querido! O seu olhar vem sendo amolado com o passar dos anos e encontra-se profundo, certeiro, preciso! Feliz do autor que tem a Graça de uma leitura assim! Beijos, Meninos!

  3. Rita,
    Obrigado pelas constantes palavras elogiosas e cordiais.
    Um beijo.

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