Drops da Sétima Arte

 Por Guilherme Preger

 

Alcarràs. Espanha. 2022.

 

 

Alcarràs é um filme de 2022, da cineasta Carla Simon. Venceu o grande prêmio do Urso de Ouro da Berlinale, um dos festivais mais importantes do mundo. A produção é a primeira representante em língua catalã a ganhar este prêmio. A jovem diretora, Carla Simon, também é catalã. Ela viveu a circunstância dramática de ter perdido ambos os pais pela doença da AIDS. Suas primeiras obras abordam o contexto dessa doença, porém Alcarràs não trata desse assunto, embora se debruce sobre os dramas familiares.

Alcarràs é o nome de uma vila no interior rural da Catalunha. O filme aborda a vida de uma grande família – avós, pais, filhos, tios, sobrinhos e agregados – todos dedicados à agricultura familiar ao redor de uma casa. Uma das preciosidades desse filme é a ilustração da exuberante riqueza frutífera do entorno: maçãs, pêssegos, figos, tangerinas, etc. A família historicamente se dedica à agricultura orgânica, sem uso de agrotóxicos. Por isso, os principais inimigos são as lebres que como pragas invadem o plantio e precisam ser mortas a tiros.

Porém, outro inimigo mais insidioso ameaça o cotidiano da família: o futuro. Mais especificamente: a energia solar e as placas fotovoltaicas. A Catalunha é uma região da Europa banhada exuberantemente pela luz do sol. O terreno lembra em parte nossa região do agreste brasileiro. A família mora numa casa em terras outrora comunais. Descobrem que a casa foi adquirida por acordo verbal e que não possuem um documento oficial de registro. Por isso, as terras em volta da casa são cobiçadas para sediar enormes placas fotovoltaicas para captar a luz solar e fornecer energia elétrica. As placas ameaçam assim as plantações que são o sustento histórico da família.

 

Cena do filme Alcarrás / Foto: divulgação

 

Três personagens se destacam: o avô e patriarca, quase sempre calado e angustiado pelo seu “erro” de não ter registrado a casa. Ele é cobrado pelo seu filho Quimet que é o verdadeiro motor tanto da produção agrícola, como da narrativa. Quimet quer apenas continuar o trabalho de sua vida que corresponde a plantar e a vender a produção a um preço justo. Toda a família está envolvida nessa atividade agrícola. Mas a possibilidade de receber renda alugando espaço para as placas fotovoltaicas parece seduzir seu cunhado e sua irmã, com quem Quimet acaba brigando.

E há também os filhos de Quimet e de seu irmão. Há os filhos pequenos, crianças, que se divertem brincando e correndo pelo campo agrícola, sob o sol. Essas crianças são incansáveis e felizes em sua liberdade rural impensável para os habitantes das cidades. Há o filho mais velho Roger, que é o que mais ajuda o pai; Roger gosta da vida de trabalho do campo, e contra o desejo dos pais se recusa a estudar para poder procurar mais tarde uma profissão diferente daquela. E há, finalmente, Mariona, a menina-moça, que é o verdadeiro foco narrativo da trama. De fato, o filme se passa filtrado pela perspectiva de Mariona que observa o conflito entre o pai e os tios, e que ainda possui uma sensibilidade especial para a chegada do tempo e as ameaças que derivam dele. Mariona gosta de dançar músicas contemporâneas ao estilo Tiktok. Ela encarna em seu corpo adolescente o ponto de encontro entre o passado e o futuro. Num certo sentido, Alcarràs é um filme clássico de coming at age, sobre a passagem da infância para a vida adulta, ao acompanhar os passos e os olhos de Mariona.

Apesar do destaque dado a esses protagonistas, um dos trunfos do filme de Carla Simon é o equilíbrio da atenção dada a todos os diversos personagens, pois embora sejam muitos, todos têm sua importância na trama narrativa e a tornam mais realista. A diretora escolheu a fórmula estética da obra semi-ficcional: atores contracenam com não-atores. O ganho em realismo é grande, com a câmera digital acompanhando de perto a movimentação vívida dos personagens, com suas hesitações, angústias e alegrias. Mas aqui é preciso cautela na observação: o apelo mimético dos filmes contemporâneos tem a ver diretamente com a complexidade dos arranjos afetivos e a indeterminação dos problemas abordados e não com uma suposta fidelidade aos esquemas sociais tradicionais.

 

Cena do filme Alcarrás/ Foto: divulgação

 

Em Alcarràs, temos como pano de fundo histórico a relação entre a agricultura familiar orgânica e as necessidades energéticas, em particular do contexto europeu. Normalmente, temos visto a demanda pela chamada transição energética, com o apoio dos governos à adoção das energias renováveis, em particular as de fonte solar. Esta transição energética é colocada como imperativa para que a humanidade consiga se livrar da dependência dos combustíveis fósseis, os maiores vilões do aquecimento global. A energia solar, com suas onipresentes placas voltaicas, é a “menina dos olhos” dos governos preocupados com o desenvolvimento “sustentável”. Mas o filme de Carla Simon traz complexidade a essa questão ao mostrar que o avanço das placas invade as terras dedicadas à agricultura orgânica. Trata-se, sobretudo, de uma disputa pela luz do sol, que é também a luz da vida. Ao misturar essa questão macroeconômica com a história íntima de uma família, a diretora catalã focaliza com sua câmera a imagem de um dilema planetário, conectando magistralmente o local e o global.  Alcarràs não é, portanto, um filme sobre o antagonismo entre tradição e modernidade. A família de Quimet não é a defensora tenaz das tradições locais catalãs; ela é ao mesmo tempo tradicional e moderna, a começar pelo fascínio pelas danças Tiktok, ou a defesa da autoprodução de maconha.

Alcarràs é então uma obra cinematográfica que se coloca no cerne de um grande problema planetário. Pois não se trata de um filme, como tantos outros, que mostra como as transformações tecnológicas impactam os modos de existência mais tradicionais, pois tanto a energia solar como a agricultura orgânica fazem parte de possíveis soluções para o enfrentamento contemporâneo do aquecimento global. É o próprio antagonismo entre tradição e modernidade que é questionado. A família de Quimet não é “tradicionalista”, no sentido de defensora dos velhos costumes. Ela é uma família contemporânea que deseja seguir adiante em seu modo de existência, que é maior do que apenas mais um modo de subsistência. O que o filme de Carla Simon aborda é justamente a beleza e a intensidade desse complexo desafio que atinge a todos os viventes e com o qual temos todos de lidar com nossos próprios meios.

 

 

Guilherme Preger, carioca, é engenheiro e escritor, doutor em Teoria Literária pela UERJ (2020). É autor de Capoeiragem (7Letras, 2013) e Extrema Lírica (Oito e Meio, 2014). É organizador do Clube da Leitura, coletivo de prosa literária do Rio de Janeiro, atuante desde 2007 e foi editor das quatro coletâneas do Coletivo. É autor do blog Fabulação Especulativa e seus trabalhos acadêmicos podem ser visitados aqui.

 

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