Aperitivo da Palavra

O duplo (ou sentimentos epistolares)

Por Sérgio Tavares

 

 

É um tanto incoerente imaginar um ícone, um ser galvanizado na galeria das figuras absolutas, demonstrar admiração velada por outrem, um sentimento inferior. Em 1922, já consagrado criador da psicanálise e próximo ao fim da vida, Sigmund Freud faz uma confissão. Em carta, ele afirma ao destinatário que, por muitos anos, o havia evitado, pois o tomava, com admiração e temor, como o seu duplo. Alguém com quem se ligava emocionalmente, através de uma estranha familiaridade com o seu pensamento, capaz de, sob uma superfície poética, equiparar-se aos mesmos interesses e conclusões que o médico reconhecia como seus. Mas quem seria a pessoa a quem Freud atribuía um poder tão equivalente ao seu monumental trabalho na interpretação do inconsciente? Quem seria esse doppelgänger emocional?

O duplo de Freud é o novelista, poeta, ensaísta e contista Arthur Schinitzler, cujo romance Crônica de uma Vida de Mulher, detidamente lançado no Brasil, é o que mais se aproxima dos pensamentos do médico vienense no campo das ciências. Usando de uma análise da empatia como forma de autoconhecimento, o livro traz as desventuras de Therese, uma mulher que, impulsionada por seus desejos, combate as barreiras sociais e morais de uma Viena corrompida e decadente, pós-Primeira Guerra Mundial.

A obra, ambivalente no sentido de tanto denunciar a hipocrisia social e seus atores escondidos em máscaras quanto a suposta harmonia defendida pelo império Austro-Húngaro, constitui-se de conceitos que alicerçavam a nova ciência de Freud. Para ambos, a força dos impulsos sexuais e do determinismo psíquico é maior do que uma sociedade, composta por homens e mulheres fiéis à aparência social e a casamentos de fachada, escamoteando situações de ruínas financeira e familiar, desespero e repressões aos desejos e às mulheres. Explorar as verdades do inconsciente e desmontar as convenções sociais urdem a interligação entre os autores.

Numa entrevista, em 1927, Schinitzler atribui a qualidade de duplo, conferida a ele por Freud, à capacidade de ambos olharem através da janela da alma. Porém o que, de fato, qualifica uma pessoa como o duplo da outra? No caso dos vienenses, como constata a psicanalista Noemi Moritz Kon, em Freud e Seu Duplo Reflexões entre Psicanálise e Arte, a identificação deu-se, exatamente, por serem filhos de uma mesma origem e dotarem de uma construção pessoal parecida; ambos judeus, médicos de formação familiar e assombrados pela morte do pai. Magnetizado pela singularidade, o duplo é um ser único, com o qual nos identificamos pelos mesmos gostos, mesmos conceitos intelectuais e morais, mesmas verdades. O duplo é um espelho circunstancial. Alguém que possivelmente nunca encontrará, passará a vida ou alguns dias, mas impossível de se esquecer. Um elo de sentimentos-cúmplices, senão o amor, o verdadeiro.

De maneira geral, o duplo distingue-se pela soma, enquanto o amor condiciona a perda. No conto The End, do volume Os Lados do Círculo, o escritor Amílcar Bettega Barbosa diz o amor como “um sentimento que predispõe alguém a desejar o outro com um grau de intensidade muito maior do que a sua capacidade de oferecer”. O amor é variável para a composição da literatura universal. De Romeu e Julieta, de Shakespeare, ao Primeiro Amor, Samuel Beckett, sua interpretação é o veio de todos os grandes escritores. Nessa tessitura de comunhões e alijamentos, o romance epistolar Carta a D. – Uma História de Amor é, possivelmente, o mais pungente texto sobre o sentimento. Escrito pelo filósofo e jornalista André Gorz, o livro é a mais fiel (e comovente) comprovação de que o verdadeiro amor é eterno.

Notório por sua influência intelectual e atuação política, sobretudo em maio de 68, na França, Gorz se destitui das retóricas sociais para compor uma carta-catarse a Dorine, com quem partilhou a vida por 58 anos. O livro se inicia com ambos velhos (e ela muito doente) e uma declaração das mais belas: “Você está prestes a fazer oitenta e dois anos (…) Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e a amo mais do que nunca”. A partir daí, o autor reconstitui o seu amor para compreender o significado de sua vida, discorrendo dos momentos que antecederam e levaram ao encontro, sobretudo pela imprevisibilidade: ele, um judeu sem um tostão; ela, uma burguesa cercada de amigos ilustres, tal qual o pensador e filósofo Jean-Paul Sartre.

 

André Gorz e Dorine / Foto: Suzi Pillet – Ed. Galilée

 

A veracidade do amor está em instantes em que Gorz afirma que “foram feitos para se entender”. Os conflitos e superações de adversidades expõem a sinceridade do sentimento, em especial na lucidez de compreenderem que a longevidade da relação depende de renúncia, tolerância e gratidão. O reconhecimento da essencialidade de Dorine na sua vida permite a Gorz construir uma homenagem das mais comoventes. Num dos momentos mais aflitivos, o autor narra a dificuldade de se tornar escritor, passando por noites insones, imerso em solidão. Quando, num momento de clareza, aproxima-se da esposa para se desculpar, ela o responde com toda a ciência de quem só será feliz se o outro assim o for: “Sua vida é escrever; então escreva”.

Carta a D. revela que o verdadeiro amor está no simples fato da pessoa existir. E, quando deixa de existir, é insuportável. Durante anos, devido a um erro médico, Dorine sofreu com uma doença degenerativa que lhe causava dores insuportáveis. Gorz sofreu, e sempre buscou a cura, ao seu lado. Em 22 de setembro de 2007, ambos se suicidaram. Contudo, ao se chegar ao final do livro, é impossível não ter certeza de que foi um ato de amor.

Em linhas gerais, talvez seja essa a distinção entre o duplo e o amor. Ou, visto pelo pacto entre Gorz e Dorine, talvez não haja distinção alguma. A definição mais concreta, afinal, pode estar na relação entre o ensaísta francês Montaigne e o filósofo La Boétie. Certa feita, ao reler um texto e pensar no motivo da amizade entre ambos, Montaigne escreveu: “Porque era ele”. Alguns anos depois, numa nova releitura, acrescentou: “Porque era eu”.

 

(Sérgio Tavares é jornalista e escritor, autor de “Cavala” (Record, 2010), vencedor do Prêmio Sesc Nacional de Literatura. Também foi premiado no Concurso Literário da Fundação Escola do Serviço Público (Fesp/RJ) e tem textos publicados nas revistas “Cult”, “Arte e Letra: Estórias M”, e no jornal “Cândido”, entre outros. O livro de contos “Queda da própria altura” (Confraria do Vento, 2012) é sua obra mais recente)

 

 

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