Aperitivo da Palavra

A busca de si e as formas fixas, a Mecânica Aplicada de Nuno Rau

Por Roberto Dutra Jr.

 

Veio o pós-modernismo e nós nos fragmentamos em tantos pedaços quanto uma tela cubista comporta. Surgiu a world wide web e nos fragmentamos mais ainda em avatares e perfis, redes sociais, raves cibernéticas e encontros virtuais. Uma nova realidade abraça a todos nós e a cidade em que circulamos circula em cada dispositivo móvel em níveis que nos viciam sugando o nosso tempo como vampiros instalados nos chips.

Estas imagens e outras povoam irremediavelmente a minha mente quando carrego as páginas de Mecânica aplicada, o novo livro de Nuno Rau, que saiu recentemente pela Editora Patuá. Façamos o reload.

Nuno Rau faz uma mescla de imagens e narrativas versificadas, surgindo rápidas como flashes entre um fluxo de consciência que também engloba samplers de outros poetas e compositores. A desapropriação de um verso alheio é a identidade de um novo poema. O indivíduo entre estas páginas, que vaga numa polis cyber-punk perdeu as ilusões e dialoga ora com um outro, que pode ser ele mesmo ou um sampler de um poeta (ele mesmo se constrói? Ou uma voz do cânone?). Não temos certeza de quem está lá, à solta; quem é este observador do fluxo de informações, desolado em reflexos de si mesmo que não reconhece. É preciso quebrar os espelhos: “… erradicar / os artefatos / da ilusão”. Fica no ar sempre a pergunta se o indivíduo é o sintoma ou a doença de si.

Uma máquina do mundo revisitada não seria uma leitura extrapolada de Mecânica aplicada. Entretanto, os poemas de Nuno Rau, com um ritmo ainda mais fragmentado, comunicam-se com suas referências drummondianas e haroldianas (de Campos) e revelam uma profunda angústia de ser no século XXI um homem (poético) sampleado.

Ora com modos de graphic novel, algum desvio surrealista e certamente impregnado de distopia, os poemas de Mecânica aplicada não encontram caminhos nessa cyber-cidade, a única fuga é a para dentro de si, como nos versos de “por dentro, por fora”: “vivendo pela margem, neste exílio / de uma pátria que não existe, a não / ser na mais absurda alucinação, / nenhum dia me abre o seu sentido; / … / além do corpo, / … / as coisas seguem normais / … / sob a pele das coisas arde um tal incêndio”.

Mecânica aplicada tem uma unidade conceitual dividida em cinco partes, sendo Subversio machine, Imago mundi, Fenomenologia dos materiais, Opera mundi e Mecânica aplicada. Os poemas “Fragmentação”, “Romantismo mode on mode off” e “Ars poetica” são o ponto de convergência deste eu fragmentado do poeta (sua consciência dentro da máquina do mundo) e dividem o livro em uma tomada de estilo e de forma.  As duas seções finais são compostas de sonetos. O caminho para dentro de si é o encontro de uma forma fixa tradicional da literatura. Seria um retorno à infância ou à infância cultural de um ser poético desiludido num mar de informações e referências, impossível de ser filtrado?

Nuno Rau não reinventa o soneto, mas utiliza o recurso como uma oposição à fragmentação. Se havia uma busca, esta deveria ser por concisão e a aplicação da mecânica surge no verso e sua prática. Versos como: “a forma fixa: o conteúdo, não. / A mente é livre, o pensamento inquieto, / e exposto a mais esta contradição / cometo – extemporâneo – outro soneto”, demonstram o jogo metalinguístico montado.  Tendo a língua como referência na busca de uma possível identidade, este indivíduo, que pode não se perceber na polis cibernética e sampleada, encontra dentro de si uma sample anterior e nela tenta se elaborar, reconhecer-se como tal. A reflexão seria um questionamento constante de muitos autores: existimos apenas enquanto linguagem?

O emprego do soneto dá um frescor no texto, embora fique também outra pergunta latente na leitura dos poemas de Mecânica aplicada: o pós-pós da linguagem literária é a forma fixa? Ainda: a resposta da fragmentação de si na linguagem é o retorno ao cânone? Incluso das alegorias da infância, do amor, do encontro do outro e demais temas que podemos considerar como universais. Creio que faço perguntas demais nessa resenha, isso me intriga, mas também elucida algo muito claramente: uma das funções da arte é nos compelir ao questionamento, além de conformismos, certezas e confortos. Tendo isto em mente quero finalizar dizendo que Mecânica aplicada, de Nuno Rau, acima de tudo, deixa claro que: reload>code = poesia.

Boas leituras.

Roberto Dutra Jr. é um carioca, suburbano e deslocado. Escritor em resistência, mestre em Letras; foi editor da Revista Escrita e contribuiu para o jornal Panorama da Palavra, e escreveu artigos acadêmicos. Atualmente oferece consultorias literárias, e leciona quase na clandestinidade. É colunista regular do blog literário Zonadapalavra, resenhista da revista de artes Mallarmargens e usa o Instagram para experimentos fotopoéticos. Foi recentemente publicado na antologia Escriptonita (Patuá).

 

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