Aperitivo da Palavra I

Breve notícia de literatura renovada

Por Marcos Pasche

gabriel R Quintão

Foto: Gabriel Rastelli Quintão

Para a memória coletiva, 2014 ficará marcado como o ano da Copa do Mundo do Brasil, com seus orçamentos faraônicos, com o ignorar do exoesqueleto de Miguel Nicolelis e com a goleada sofrida pela Seleção Canarinho, em jogo contra a Alemanha. Por sua vez, é provável que os engajados no debate político destaquem no ano a prisão de manifestantes que se posicionaram contra o que a Copa custou financeira e socialmente, sublinhando também o início da Operação Lava-Jato (sic), da Polícia Federal, que prendeu muita gente do alto escalão.

Sem me abster da coletividade, a mim pareceu que 2014 é um ano literariamente promissor. Reconheço que, nesses termos, promissor qualquer ano é, como arruinador de esperanças todos os anos podem ser. Portanto, a minha impressão alvissareira não esconde a obviedade pessoal: chegaram até mim livros que chamam a atenção pelo misto de juventude e maturidade de seus autores. São eles: a primeira morte, de Maíra Ferreira; Peomas, de Leandro Jardim (ambos de poesia); O que eu disse ao General (contos), de Anderson Fonseca; e Fagundes Varela, Poeta (ensaio), de Juliano Carrupt do Nascimento.

Sublinho a obviedade e o acaso para ir do relato pessoal à crítica do tempo: os livros de que tratarei aqui não figuraram nem mesmo nas notinhas de lançamento de grandes suplementos e jornais de literatura do Brasil. Seria injusto não reconhecer a pletora de lançamentos em contraste com a exiguidade de periódicos, mas não se pode ignorar que estes têm as suas lentes de grande alcance, o que se verifica todas as vezes em que um autor de alguma invisível periferia é anunciado.

Volto ao pessoal, sem dissociá-lo da crítica: eu sugeri aos jornais e suplementos que leio e com os quais colaboro resenhas sobre os livros em questão, mas houve recusa direta ou eloquente silêncio, e eu suponho que pelo menos de alguns desses periódicos seria diferente a resposta caso os livros fossem de editoras ricas ou se os autores tivessem guiado sua escrita por aquilo que pede a pauta contemporânea: a voz de uma minoria, a escrita em novos suportes de tecnologia, o cruzamento dos gêneros. A pauta é inegavelmente importante, dado que ela reclama atenção para o que, de modos diferentes, destoa de alguma hegemonia. Só que ela – a pauta – inegavelmente é transformada em moda, e assim àqueles em que não se verifica um determinado tipo de diferença não se dá a chancela de autênticos contemporâneos, ainda que sejam autênticos escritores. Mas aqui estamos num veículo não tomado pela tendência mercadológica, o que também é promissor, sobretudo num momento em que a promessa se cumpre pela centésima vez. A abordagem em conjunto inevitavelmente reduzirá a análise específica, mas tentarei fugir da mera informação.

Comecemos pela poesia, e comecemos por um começo. a primeira morte marca a estreia de Maíra Ferreira, e caso se junte o debute à idade da autora no momento da publicação (24 anos), causará espanto o fato de em nada o livro parecer o de uma estreante, dada a coesão da linguagem que permeia os poemas. Coesa também é a ambientação dos textos, via de regra num universo doído, repleto de desencontros, ainda mais cortantes porque a voz que os anuncia nunca cede ao derramamento emotivo, como se verifica no extraordinário “pequena princesa”: “se você diz que vem às nove, por/ exemplo, desde as sete estarei/ enrolando os cachos que não/ nasceram para ser cachos e preparando/ a comida com receitas que nunca/ aprendi e retirando os pelos/ de todos os lugares onde não se/ pode ter pelos e deixando à mostra/ a pele que precisa ser/ pelada a pele impelida/ pelo relógio marcando nove horas/ e alguns minutos que é quando/ descubro que na verdade você/ não vem e meus pelos agora/ entopem o ralo do banheiro/ desejando não terem sido/ expulsos da vida por tão/ pouco”.

O poema propicia um desdobramento: em a primeira morte a dicção geral é feminina, sendo alguns textos dotados de fortíssima sensualidade. E se a dor é dita com absoluta isenção de sentimentalismo, a pele pulsa de um modo surpreendentemente erótico e sutil, matéria de “náufragos”: “estou bebendo toda a sua água/ como quem mastiga o seu corpo/ como quem engole o seu rosto/ ou chupa/ a sua voz/ sem remorso bebo/ toda a sua água/ e entrego a minha inteira e intacta/ pra você/ beber”.

Peomas é o terceiro livro de poemas de Leandro Jardim, que também publicou um volume de contos, Rubores, de 2012.  No presente trabalho, a escrita aparece mais encorpada, fundindo o que havia de melhor nos livros anteriores – especialmente o tom despojado e as tiradas criativas – a uma visão abrangente do tempo em que se encontra. Acerca disso, as investidas metapoéticas não tratam apenas da escrita e seus códigos, mas sim de uma forma de pertencimento e recusa aos dias que se colocam aos poetas, conforme se lê no emblemático “De época”: “Eu poderia tornar drama/ épico o meu passado,/ tão simples e prosaico,/ tão contemporâneo.// Eu poderia erguer pirâmides egípcias/ de complexos de Édipo, palavras/ à sombra do império paterno,/ dourar o meu caderno.// Mas meu cotidiano foi mais/ humano, e não menos/ poético por isso:/ ser mundano é mais propício”. Registre-se com maior ênfase o (antológico) poema que lembra as andanças reflexivas de Drummond e Gullar pela rua, na medida em que a expressão poética, a um só tempo, rumina sobre o fazer do poeta e sobre seu lugar no mundo. Confinado em seu carro, igualado aos que se atolam nos engarrafamentos ubíquos, o poeta, no exato momento em que revela o nascimento do poema, diagnostica seus limites na república pós-moderna – “Nada grave,/ só mais uma obra,/ só mais um veículo,/ só mais uma via.” –, sem, entretanto, deixar de flertar com a ambiguidade que instaura uma nova possibilidade, de sentido textual e de via existencial: “Não grave nada,/ só mais uma poema,/ só mais um poeta,/ só mais um dia”.

Como a poesia está em pauta, convém citar um de seus novos e vigorosos intérpretes brasileiros. Falo de Juliano Carrupt do Nascimento, erudito e engajado professor do Ensino Médio do Sul Fluminense, em Volta Redonda. Apesar do vínculo universitário como aluno de pós-graduação, Juliano é um estudioso autônomo, o que se verifica de modo cabal com este Fagundes Varela, Poeta, tanto pelo objeto de análise quanto pelo próprio fazer do livro, que não resulta de uma demanda acadêmica específica, como dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Juliano Carrupt do Nascimento é antes de tudo um apaixonado leitor e militante do saber, e se isso já se verificava em sua publicação anterior – O negro e a mulher em Úrsula, de Maria Firmina dos Reis (2009) –, acerca da desconhecida romancista maranhense, agora se mostra de maneira mais pujante e abrangente, na medida em que o autor percorre com fôlego a bibliografia crítica dedicada a Varela, inserindo seu trabalho nesta como nova e admirável contribuição. Como Juliano também é um pensador do Ensino Médio, sua crítica literária não dissocia a sala de aula universitária da secundária, fato verificável em seus eloquentes questionamentos: “Qual a imagem da vida e da obra de Fagundes Varela que nos chegam via veículos institucionalizados de ensino e aprendizagem da poesia nacional, tais como livros didáticos, ensaios e pesquisas históricas de cunho teórico e crítico? Ou, qual a situação de seu público e local de fala, nos XIX?”.

Os meios oficiais de comunicação e as redes sociais diariamente nos trazem a notícia de um mundo obscuro, tão desenvolvido quanto apegado a todo tipo de barbárie. É desse mundo estranho, gerenciado por totalitaristas – sejam ditadores ou democratas –, que se abastece O que eu disse ao General, primoroso livro de narrativas curtas com as quais Anderson Fonseca evoca cenas e personagens da política internacional para escancarar a selva globalizada. A poderosa síntese entre construção literária e referência histórica confere à obra um singularíssimo lugar na literatura contemporânea, quer pela originalidade do argumento do livro, quer pelo teor crítico estampado pelas páginas. Como exemplo, cito o irônico “Santa Ceia”, dedicado ao ex-presidente do Paraguai, recentemente deposto do cargo. Trata-se de leitura para a cabeceira da presidenta do Brasil: “O presidente amava cães. Em sua casa ele criava dez. sempre passeava com os cães, à tarde, nos jardins da casa presidencial; e a cada um alimentava. Embora fossem de linhagens carnívoras, não representavam nenhuma ameaça. Houve um dia, entretanto, que (sic) o Presidente enraivecido não deu a eles comida. Os cães, em troca, o devoraram”.

Esses quatro livros dão boa mostra da qualidade do trabalho de jovens autores no País. Agora é torcer para que a outra parte se cumpra, e que eles encontrem os leitores que suas obras demonstram merecer. Esse gol é do Brasil.

 

Marcos Pasche é crítico literário e informa que a palavra “foco” tem sinônimos na Língua Portuguesa.

 

 

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