Aperitivo da Palavra I

Singularidade pelo negativo

Por Renato Tardivo

 

capareprodutibilidade

 

Reprodutibilidade estranha e familiar

 

No lançamento de O ser humano na era de sua reprodutibilidade tática (Ed. Patuá), livro de Valerio Oliveira, a criança que me acompanhava disse ao observar a capa: “Olha, esses monstrinhos seguem uma ordem: vermelho, azul, verde, vermelho, azul…”. Ela estava correta.

O título deste livro de poesias é uma paródia – ou atualização – do ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin. Muito resumidamente, a ideia do ensaio é que, sob a égide da reprodutibilidade, a obra de arte teria perdido a sua singularidade e, portanto, seu sentido mais originário: dar a conhecer algo de seu mundo próprio.

O foco dos poemas de Valerio são os seres humanos na (e da) contemporaneidade, período em que os avanços técnicos e tecnológicos atingiram patamares elevados a custos muito altos e são disponíveis a uma mínima parcela da população. Além disso, como já escreveram Horkheimer e Adorno muitas décadas atrás, na conjuntura em que realidade e ideologia correm uma para a outra, os comportamentos dos sujeitos, banalizados entre realidade e artifício, padronizam-se. E, como nos mostra Valerio Oliveira, tem sido assim cada vez mais.

Com humor ácido, metalinguagem e, inclusive, alguma dose de lirismo, o poeta convoca o leitor, pela via da sensibilidade e reflexão, a vivenciar o estranhamento e o incômodo justamente ao se reconhecer em suas personagens. Distante de uma perspectiva panfletária, portanto, os poemas resgatam o leitor (ser humano) de sua reprodutibilidade tática pelo negativo. É ao tomar contato com a reprodutibilidade humana, tão estranha quanto familiar, que nos damos conta de sua singularidade, ainda que às custas, por exemplo, do desconfortável “ombro com ombro com ombro com ombro” (“Deus salve o Estado”).

Poética singular e múltipla

O casal que passeia pelo apartamento (“Ordem e desordem”), o sujeito que sai do cinema de mãos dadas consigo mesmo (“Final feliz”), as “Verdades sem olhos ou pernas”, título da primeira parte do livro, e as “Mentiras sem boca ou braços”, título da segunda, são emblemas dos seres humanos desenhados por Valerio: fragmentados, amputados, esburacados, e equivalentes em sua mediocridade. Nesse sentido, a capa, de autoria de Teo Adorno, é muito apropriada. Os monstrinhos seriais, sagazmente percebidos pela criança que me acompanhava, são metáforas visuais daquilo que somos.

Não é aleatório, portanto, que os últimos poemas do livro abordem as ambiguidades contidas na relação eu-outro: “Eu e os outros”, “Obras completas de Valerio Oliveira”, “World burly brawl” e “Os trinta Valerios”. Dessa perspectiva, o livro torna-se ainda mais interessante. Sabe-se que o autor desdobra-se em múltiplas personas.

Nos anos 1990, surgiu um talento na literatura brasileira: Nelson de Oliveira (embora o próprio tenha me confidenciado que Valerio nascera antes, mas Nelson foi o mais celebrado). Ocorre que, ao desdobrar-se em quatro – Valerio Oliveira, Luiz Bras, Teo Adorno e Nelson de Oliveira –, o artista singulariza-se ao limite, pois assume-se múltiplo.

Diferentemente dos seres fragmentados, da capa ao interior do livro e às páginas do mundo, a unidade da poética do autor decorre justamente da comunicação entre os diversos. A um só tempo singular e múltipla, sua obra é uma espécie de alternativa – irônica, cômica, crítica – aos cenários banalizados retratados no livro.

O milagre da expressão

   

Como um pode ser quatro, ou mais até? Como explicar experiências que atravessam gerações, simultaneamente reais e ilusórias? O mais provável é que não haja explicação, mas, como escreveu Clarice, “viver ultrapassa qualquer entendimento”. E a literatura, essa trama expressiva do sensível, de fato promove milagres. Como o que eu comecei a vivenciar na Bienal do Livro de São Paulo, cerca de dez anos atrás. O sonho de me tornar escritor crescia, sempre alimentado por uma de minhas maiores incentivadoras: minha avó. Pois bem. Lá na Bienal ela me disse: “Escolhe qualquer livro para eu lhe dar de presente”. Escolhi Subsolo infinito, romance de Nelson de Oliveira, livro que guardo com muito carinho.

Não poderia imaginar naquele domingo, na Bienal, que dez anos depois eu estaria lançando meu quarto livro, que me lembraria desse dia ao ver Nelson de Oliveira (ou seria o Luiz, o Valerio, o Teo?) se aproximar para eu lhe fazer a dedicatória no (meu) livro. Tampouco imaginaria que, enquanto escrevia a dedicatória, veria a minha avó de rabo de olho, e pensaria em chamá-la para perguntar se ela se lembrava daquele dia na Bienal e apresentá-la ao autor do livro que ela me deu de presente, e que não haveria tempo para nada disso, porque, na era da reprodutibilidade tática, o próximo da fila já abria o seu exemplar para eu assinar.

Renato Tardivo é escritor e psicanalista. Mestre e doutor em Psicologia Social pela USP, é autor do ensaio Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê/Fapesp), da novela Castigo (E-galáxia) e dos volumes de contos Do avesso (Com-arte/USP), Silente (7Letras) e Girassol voltado para a terra (Ateliê). Colabora regularmente com textos sobre cultura para veículos como a revista Cult e o Observatório da Imprensa.  

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *