Aperitivo da Palavra I

As dexistências em Victor Prado

Por Lisa Alves

 

capa-bastardo

 

”Bastardo” é uma obra poética desmembrada em três capítulos, “Voçoroca”, “Passeio” e “Caleidoscópio”, e possui cerca de 57 poemas dentro de 124 páginas. O livro foi lançado recentemente pela Editora Urutau (que já chama atenção pelo design e qualidade de seus livros e a acertada escalação do corpo de autores). Victor Prado (1995) reside em Franca/SP, publicou dois livretos digitais Mamute (2014) e Onde Eu Poderia Estar (2016). Tem poemas publicados na revista Mallarmargens, Diversos Afins, Enfermaria 6, Jornal RelevO, entre outras revistas e sites literários.

 

“Mas dizer sempre é pior do que ouvir.”

 

Clarões, pequenas interrupções, movimentos e a linguagem arriscando explicar os desentendimentos que nos cercam em torno da palavra. Tenho a sensação que estou assistindo um filme, mas é um poema, o primeiro, talvez o principal – aquele que batizou a obra de Bastardo“.  Lembrei de Blanchot em “Espaço literário”, quando diz que ler não é obter comunicação da obra e sim fazer com que a obra se comunique. Sou leitora, escritora e não tenho condições de criticar qualquer obra literária, mas posso comunicá-la tal como ela se comunicou comigo. Mas advirto: a obra poética de Victor Prado não é explicável, não é uma composição química que podemos separar os elementos envolvidos. Sendo assim, é preciso ler “Bastardo” e degustar uma, duas, três ou infinitas vezes. Vamos lá?

Um dos pontos que mais me atraiu durante a leitura do livro foi a reprodução de títulos seguidos por números, indicando uma sequência ou uma série – confesso que inicialmente fiquei incomodada, afinal de contas o 5 não pode vir antes do 2. “Não mesmo? Quem disse? Quem determinou?” – me questiono. Então lembro à leitora (aqui dentro) que na arte a ordem temporal linear é inútil (ou no mínimo desnecessária) e então afogo meu suposto incômodo e volto a imergir na obra de Victor. Lembrando que vários outros poemas de “Bastardo” seguem também a sequência numérica, tal como os poemas “Arquitetura de Percepção”, “Sábado”, “Domingo”, “Confissão” e “Mal-Estar”, porém comentarei apenas duas séries, pois não pretendo dissecar a obra de ninguém (não acredito em roteiro para leitor), tal como não desejo que façam com a minha, é irresponsável e pretensioso. Acredito que cada leitor é capaz de procurar o próprio caminho durante a comunicação com uma obra (independente do gênero). Sendo assim, destacarei então as sequências “Não-Sei-Onde” e “Domingo”.

A série “Não-Sei-Onde” me trouxe a percepção de uma constante fragilidade na voz do eu poético – uma voz brotada das profundezas, uma voz que assessorou na montagem de um mosaico recheado de quedas, naufrágios e soterramentos. O primeiro poema da série se encontra no primeiro capítulo, “Voçoroca”, é intitulado por “Não-Sei-Onde 5″ e discorre acerca do desmoronamento do ser ao lidar com sentimentos (próprios ou de outros):

(…)

Tua saudade me engole
e eu murcho e sou engolido

 

Não saindo para muito longe, no mesmo capítulo, encontro “Não-Sei-Onde” (agora sem número), que versa o autoconhecimento (nem sempre bem-sucedido) e fatidicamente tem o afogamento como resultado. Paro para digerir o poema e percebo o amplo dedo na ferida que Victor decidiu empregar. De fato, quando nos analisamos de forma profunda não somos capazes (no primeiro minuto) de mergulhar e ter a dimensão da profundidade que estamos nos lançando e tampouco temos a ideia das armadilhas que nos esperam. Mergulhar pode ser um caminho sem volta:

(…)

Mergulho
e desapareço

 

Já lá no segundo capítulo, “Passeio”, dou de cara novamente com outro “Não-Sei-Onde 2” – mais uma vez a série aborda o encobrimento, a ocultação, só que, diferente do primeiro capítulo, o poema atravessa antes pelos escombros materiais do que psicológicos. Victor nos lembra de Mariana – a cidade soterrada pela lama (a lama não metafórica “é a lama, é a lama”) e a lama não para por aqui, outra vez ressurge no poema “Não-Sei-Onde 4“:

(…)

De outros mangues
e critério
e achismos
Me afundo nesta lama
de não-sei-o-quê.

 

E a série é finalizada no capítulo com “Não-Sei-Onde 3”:

(…)

Dexistimos em períodos iguais
Rexistimos com frequências diferentes.

 

Na série “Domingo”, há dois grandes poemas, duas pérolas comoventes e que convidam o leitor a desvestir da própria carne e se lançar no outro, no diferente, no estrangeiro. Leiam os dois poemas na íntegra:

Domingo (cap. Voçoroca, pág. 37):

 

Entro no mercado
e vou ao açougue
E lá está ele:
um japonês-brasileiro
E aquele rosto
me lembra outro mundo

/

me bate uma vontade
de ir pro Japão
de abraçar o japonês
De deixar a fila
sair do mercado
de recomeçar tudo
em outro lugar
em outro tempo
de novo.

 

Domingo 2 (cap. Passeio, pág. 60):

 

O japonês vai embora,
continuo na fila
Um senhor de idade
fura fila e conversa
com o homem na minha frente
Eles sorriem
eu sorrio junto
como se fizesse parte da conversa
O senhor pesa suas batatas
e vai embora
(a fila aumenta)
Eu sou o próximo.

 

“Bastardo” de Victor Prado é um convite poético para um quebra-cabeça sem figura definida. Quer sentir? Então siga além e não se deixe levar apenas por minhas limitadas percepções.

 

Lisa Alves nasceu em 1981, é mineira (Araxá/MG) e radicada em Brasília. É curadora da revista Mallarmargens. A autora tem textos publicados em diversas revistas e páginas literárias (nacionais/internacionais), e poemas publicados em sete antologias lançadas no Brasil, Argentina e País Basco. Lançou em agosto de 2015 seu primeiro livro de poesia, Arame Farpado, pela editora carioca Lug em parceria com o Coletivo Púcaro.

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