Aperitivo da Palavra I

RENATO SUTTANA – AS PORTAS QUE ME ABRIRAM

 Por Jorge Elias Neto

                                                                                                              

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Nem sempre as portas que se abrem, os caminhos que se apresentam – vários – se traduzem em possibilidades infinitas ou sinalizam um futuro de luz e certezas. É neste caminho que nos conduz Renato Suttana neste “Quando me abriram portas”.

Diz o poeta das portas transpostas, da ilusória luz do instante, do penoso desdobrar-se neste policromático mundo da pós-modernidade. Propõe a necessidade que o pressuposto semideus tem de “descer do Olimpo” e ficar “em casa, num tédio a demora-se…”, pois somente assim “apagadas as luzes” ele vê “reavivar a brasa do engano-pretensão na alma finita”. Mas, este avançar “sob luz escassa”, que se afigura desolador para os desprovidos, se apresenta ao bardo como uma prova da sombra.

Suttana convida o leitor a hesitar em lançar-se no instante; a aguardar e observar as portas abertas; a observar a luz-poema que antecede o passo desnecessário.

Uma lamparina ilumina muito pouco, quase nada. Seu principal papel pode ser nos mostrar o quão escura é a noite. Podemos raciocinar de igual forma em relação ao poema, pois ele pode servir para muito pouca coisa, ou mesmo para nada, como muitos pensam ou pretendem nos convencer. Mas isso é um engano. O poema nos abre os olhos para as cores em nosso redor. Faz-nos ver a poesia das pequenas coisas do cotidiano. Emociona-nos. E isso é essencial para a humanidade.

Que digo? – E eu, que não sei a não ser isto –
a não ser algum trapo de alcançar
que esfarrapa a nudez de que me visto?

O poeta nos motiva a “passar do trêmulo ao seguro”. E isso é possível quando não nos cobramos tanto em relação ao porvir e às conquistas; quando não imputamos à nossa existência a primazia do instante. Digamos “NÃO” à “urgência que a preguiça desmantela!”. Digamos basta às “necessidades, preitos, juramentos – saltos, vertigens, surtos, lançamentos…”.

Vemos o “ser desnudo”, múltiplo, incoerente a refletir sobre sua existência, abandonado nesse “mistério de avançar sozinho”.

Um brinde então à incoerência humana…

Através dessas portas não transpostas nos atinge a luz da imanência – aguda.

Eis o processo de desconstrução possível, o (desa)sossego atingido, essa “coisa simples, verdadeira, que há de durar, no entanto, a vida inteira.”

Homem, ser-arremesso, que:

Não encontra o propósito que o incumba
E passa assim seu tempo, transtornado,
A pensar no equilíbrio perturbado
De um peso sob o qual, no fim, sucumba.

Somos matéria incógnita – nós – o “capital humano”, os replicantes de “Blade Runner”, fruto de uma robotização, visto serem os replicantes também consumidores a realimentar o ciclo capitalista. Buscamos a notoriedade, mas somos massa de manobra, matéria incógnita.

Não se discute aqui o “salto” camusiano, mas o “salto” cotidiano em busca do que insta e instiga o “errôneo salto”.

Livro que nos diz do caminho, do nosso caminho, nossa relutância – quando críticos – em “avançar para dentro da chuva”, conscientes de estarmos “perdidos em um rastro não perseguido”.

Esse parar e avançar do homem contemporâneo, essa “ansiedade de ver e de saber”, essa busca incessante da superação do limite, esse “disparar-contra mil coisas”.

Não é inócua a batalha da vida. É uma busca inglória, onde nos consumimos em busca de prazer – “combustível de nossa ansiedade – aguado e vão”.

E isso já se observa no poema que nomeia o livro de Renato Suttana, quando o poeta identifica a falsa “Máquina do Mundo”, agora não mais a máquina metafísica drumondiana, mas uma “anti-máquina” – sedutora – a nos polvilhar instantes.

Quando me abriram portas, não passei.
Quando, ao longe, acenando, me chamaram
E a direção da entrada me mostraram,
Foi com orgulho e calma que os tratei.

Quando, sem compreender por que hesitei
Frente aos tesouros que me presentearam,
Finalmente, a sorrir, me deserdaram,
Seguindo o rito de uma antiga lei,

Foi com uma indiferença de mendigo
Que a sagração troquei pelo perigo,
Preferindo os desertos do extravio:

Sem entender eu mesmo – assim ninguém –
O motivo, a razão do meu desdém,
Nem o (se o houve) sentido do desvio.

 

As portas de Suttana se abrem para o efêmero, dizem dos mares, labirintos, nos guiam com a luz-poema por mares, desertos e labirintos. Mostra-nos, e nos faz sentir, a dor de “estar assim de frente para o que é sem resposta e é, no entanto, observável”.

São poemas-galope, de ritmo angustiante, tradução do que nos tornamos. Sim, mais uma vez a poesia nos traduz. Homens “moldados” pelo deus-mercado a nos dizer “Vai mais longe. Não para. Precipita-se. Atira-se por cima – do impossível…”.

 

Velocidade insólita – imprevista –
De tudo quanto a vida movimenta:
Da esperança de ter, que nos alenta,
Do desejo de ver, que nos despista.

Vertigem que nos alça e nos orienta
Em direção a um nada de conquista,
Pulsando em nós (até que a asa desista),
Como um sonho de altura, na tormenta.

Pressa de achar sentido e dar resposta,
No escuro do intervalo, a uma questão
Que é no entanto ou equívoca ou suposta;

Mas que nos leva adiante e nos madura,
Nos instiga entre as chuvas, no verão,
Nos faz querer a meta – erma e futura.

 

Suttana é um “especialista em desistência”.

 

sabe que na metade, em plena urgência
de dar um fecho ao plano, ao meditado,
se cansou – e há de estar ali parado,
satisfeito de espera e inconsistência.

 

Diz Ortega e Gasset que “la conciencia de cada uno de nosostros, em efecto, es uma sociedad de personas; em mi viven vários yos, y hasta los yo de aquellos com quienes vivo.”

Se considerarmos que quando morremos persiste a Vontade, mas parte um Universo representado pelos olhos de nossa consciência; e se somos: “eu e nossa circunstância”, quando morremos morre um pouco da consciência da sociedade, pois nosso olhar, nossa forma particular de olhar, não deixa de sofrer algum olhar que seja o olhar do poeta; uma forma particular de “ver” contida em um universo de olhares “medianos”.

E este livro é uma visão critica da contemporaneidade sob o formato clássico do soneto. É esse o “truque” do poeta: a retomada da forma clássica.

Realizei o meu truque em plena claridade
Diante da multidão que não veio me ver,
Mas por acaso ali parou, a se entreter,
Num limite exterior da infinita cidade.

Movidos (reparei) pela curiosidade,
Uma pergunta me fizeram de ir e ser,
A que eu não soube – o equilibrista – responder,
Pois me ocupava um pensamento da verdade.

Como o espetáculo durasse pobre e morno,
Pediram-me que desse um salto diferente,
De modo a divertir com uma pirueta a gente. –

E eu, com um gesto teatral de excelência e retorno,
Da cartola tirei um pombo, um coelho, um lenço –
Que eram migalhas só do meu denodo imenso.

 

Não gosta o leitor da forma, da métrica? Que pena! Considera-a anacrônica? Um enfado? Sugiro que se desfaça deste ranço, deste preconceito, e reflita sobre o que significaria a retomada das formas clássicas para discutir a questão do nosso tempo.

E nada melhor do que começar pela leitura deste “Quando me abriram as portas”, do poeta Renato Suttana, lançado pela Editora Mondrongo. Certamente, um dos melhores livros de poemas publicados nos últimos anos em nosso país.

 

Jorge Elias Neto é capixaba, poeta, ensaísta e médico. Autor de “Verdes versos” (Flor&Cultura – 2007), “Rascunhos do absurdo” (Flor&Cultura – 2010), “Os ossos da baleia” (SECULT – 2012), “Glacial” (Ed. Patuá – 2014), “Breve dicionário (poético) do  boxe” (Ed. Patuá – 2015) e “Cabotagem” (Ed. Mondrongo – 2016). Publica regularmente na Revista Diversos Afins, Mallarmargens, Revista Germina de Literatura e Revista Zunai.

 

 

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