Aperitivo da Palavra I

Bífida, o poema na multiplicação da vida

Por Helena Terra

O livro é o de estreia na poesia, mas os versos se apresentam encorpados dentro de uma rota em que a linguagem, a subjetividade e o imponderável, da delicadeza à brutalidade, clarificam-se em uma expressão pessoal e em uma estética representativa do que nos é universal e inesgotável em confronto com o que nos é singular e finito e vice-versa.  Bífida e outros poemas, de Alexandra Lopes da Cunha, uma das vozes mais originais da nova poesia brasileira contemporânea, concilia, em sua dicção ora coloquial ora sofisticada, a escalada e a queda, não necessariamente nessa ordem, dos sentimentos e das inquietações peculiares a todos os seres humanos, em especial, às mulheres, suas nuances e seus espaços.

O título do livro não é aleatório. Bífida, feminino de bífido, vem do latim bífidu, aquele que está fendido em duas partes, que foi partido ou separado.  “Dividida de nascença, / bipartida na origem,” são os versos que abrem o poema que leva o mesmo nome da obra e que serve também como indício, quem sabe porto seguro, da visão de mundo complexa, reflexiva e dialética da autora. Seu pensamento é lúcido, autoconsciente, crítico. Suas emoções, viscerais.  Se por um lado, há ponderação, quase meditação, sobre o sentido da vida, por outro, há indisciplina, quase revolta, sobre o desconcerto de estar no mundo.

Os desdobramentos dos poemas, quarenta e nove organizados em ordem alfabética, são diversos. O corpo na multiplicação da vida: “Na nudez do meu útero / acumula-se o pó dos anos.”; as obrigações do narcisismo culturalmente impostas: “Sou mulher sem qualidades / Desqualificam-me os adjetivos / e os advérbios ignoram-me / solenemente.”; e a pulsão sexual em constante combate com as intimidações da sociedade patriarcal: “Penetra meu corpo pelos poros de minha pele, / imprime em minhas retinas tua onipotência.” são três temas recorrentes do mosaico poético inaugurado por uma das questões mais presentes, senão a maior, da humanidade: a morte.

Os três, repetindo-se e reproduzindo-se, funcionam como uma espécie de tripé ou de paradigma social e emocional para as invasões e desenvolvimento dos demais assuntos e para a consumação do todo poético, do mesmo modo, político, filosófico e ideológico, não havendo um maior ou mais impactante. Por detrás das fragmentações e da discreta falta de nitidez, comunicam-se e convergem-se identidades que nos traduzem.

Nada disso, entretanto, nos permite desvendar ou dominar o Bífida e outros poemas. A abrangência e o significado mais profundo de cada poema se ampliam a cada releitura, renovando o campo semântico e as possibilidades de apropriação e de fruição dos leitores. Uma experiência ressignifica a outra e a outra e assim por diante assim como, também, ressignifica a herança literária e cultural das gerações passadas.

Não há citações, mas é possível vislumbrar influências, rastros; é possível estabelecer conexões e diálogos do Bífida e outros poemas com a produção de outras mulheres poetas: Marina Tsvetáieva, “ não serei animal ferido que se / arrasta”; Wislawa Szymborska,  “habitualmente, acordo na condição da testemunha atrasada, / com o milagre já consumado”; e Emily Dickinson, certeira com o seu “uma palavra morre / quando falada / alguém dizia. / Eu digo que ela nasce / exatamente / nesse dia”, são alguns exemplos da substância contagiante e libertadora da poesia, que se for de verdade, não há por que duvida, já nasce assim de pé e inteira.

Helena Terra é gaúcha, escritora e ilustradora. Publicou contos, poemas e textos em antologias e revistas literárias e o romance A condição indestrutível de ter sido.

 

 

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