Aperitivo da Palavra I

O mundo é uma roda e nós no meio ou como se deu minha Trans forma são

Por Mayana Rocha Soares

 

 

Platão tinha mesmo razão em temer a presença de poetas em seu projeto de pólis. É gente perigosa, que faz movimentos curandeiros com palavras. É brincando de transmutar que o poeta Alex Simões ginga formas, palavras e sentidos, em seu recente livro de poesia Trans Formas São, lançado em 2018, pela editora soteropolitana Organismo. Esses giros de poesia não foram por mim lidos na racionalidade pretendida de uma crítica literária, mas atingiu o corpo. Taí o seu perigo! Atingindo o corpo, ela (a poesia e seu efeito alucinógeno) tem o poder de agir como feitiço e reorganizar sentidos, desejos, gestos de afeto. Alex nos deu um roteiro de transmutação. E mudar é perigoso para os desejos da nação. Há sumários por todos os lados como bússolas para gente poder se perder à vontade. Há o sagrado “no meio do caminho, entrelugares”, entrecaminhos, encruzilhadas tecnológicas, cantos, sons, Exu, ebó, padê. Sem eixos centrais de sustentação. “Mas há um centro?” Só o habitar do fora.

Alex Simões é poeta, professor e performer baiano. Além de muitas outras publicações em livros e coletâneas, realiza no próprio corpo a experiência literária, através da performance. O livro é composto de 37 poemas. Por meio destes, Alex Simões expõe o mundo através dos olhos apaixonados de quem não apenas observa a vida passando, mas a vive. Por quem atravessa a vida transformando e sendo transformado por ela. Trans Formas São é um livro de performances artísticas das palavras, das formas e sentidos todos, reorganizados a partir do que sentimos, de como amamos e de como seguem nossos desejos e afetos.

O poeta admite fingir, mas não só como o Pessoa, o português. Melhor. Não finge só a dor. Ele diz: é que “me faltam boas ideias e tendo a apelar para grafismos”, há que “fingir que já li muitos calhamaços, roubar, plagiar, sempre negar”. É que “a vida sem sentido dá avisos / há vida pulsando / o tempo urge e às vezes dói lembrar”. Eu também roubo suas palavras agora, mas não sou poeta. Me permito transbordar nessa lama de palavras. Mergulho nela e me transformo também. Aquela mulher que abriu a primeira página do livro não é a mesma quando encerrou a leitura. Alex é modesto. “embora não despreze o métier, e seja mau poeta, é de outra subárea: dos que temos alguma vocação, não pra poesia, mas pra gambiarra”. Acha que é um poeta ruim. Se ser ruim é cumprir essa difícil tarefa de trans forma são, sem controle de como isso é possível, sem reconhecer seu alcance, então, fique satisfeito: você é muito ruim nisso! A gambiarra é que salva! “Toda/o poeta é experimental / obcecado por buceta” [de minha parte, também gosto] / transgênero por vocação / híbrido por definição / fundado na incerteza”. A gambiarra é essa arma que faz da literatura ser aquele menor, conforme Deleuze e Guattari nos ensinaram.

As certezas todas foram embora. Em Trans Formas São nos instalamos no oblíquo, na experiência do quase. “é quase um manifesto / por um quase negro / que é quase um homem / quase filho caboclo eké orixá santo sem base”. “O mundo é uma roda e nós no meio” e a “minha vida é um baile entre seus braços”. Transmutei seus versos para senti-los, novamente, dentro de mim de outros modos, em outras velocidades. Eu também não sei ao certo “que porra é mesmo o contemporâneo”. Mas sei que a poesia underground não tem limites temporais, porque vive nos subterrâneos. Depois discutimos “se houve mesmo uma autoria ou criação coletiva”.

Walter Benjamin, sabiamente, uma vez disse assim: “Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie”. Ainda bem que não estamos tratando de um documento, mas dá sua potência significativa, da poesia em seu estado de resiliência. Em sua formulação viva e pulsante nos corpos. “então pergunto: memória e corpo / há distintos um do outro?”. Recortes palavreiros de uma nação colonial em ruínas. Alex dispara um ciclo de notícias: das desalianças internacionais à barbárie da civilização. Em terras brasilis, “Aqui tudo parece que era ainda construção, e já é ruína”, como cantou Caê. Alex nos joga na parede e nos constrange a pegar visão: “em suspenso ninguém vive nem se acerta sem medida”. Vê isso? É o sangue das ossadas da barbárie ainda fresco batendo nas paredes da memória. Afrodiasporicidade. Ancestralidade. Abre o olho, é preciso ver: “escravizados desembarcaram de navios negreiros / morrendo por maus tratos e/ou de orgulho, talvez numa recusa por servir, morrendo como parte de um processo histórico e de resistência em luta”. Marielle, quem matou? David? Luana? Dandara? “escondemos de nós mesmos trezentos anos de escravidão”. Mas de lá dos escombros nos assombram com seu sangue, sua ossada e sua vingança, “enquanto segue o porto maravilha / com o futuro museu do amanhã / o que fazer dos crimes insepultos?” É verdade, “a gente tem de dar uma de louco porque senão ninguém presta a atenção”. É Grada Kilomba que diz “corpos brancos são sempre corpos que pertencem a algum lugar”, posto que nossos corpos negros foram desterrados e mal enterrados pela colonialidade. Acredito que Trans Formas São territorializa, em alguma medida, esse nosso cuíerlombo, para usar uma expressão de Tatiana Nascimento, de gente preta, insubmissa, dissidente e selvagem.

Trans Formas São também são formas trans, trocadilho barato, mas tem seu efeito. Entre cores e amores, essa poesia carrega uma inquietação, um não sei bem o que de agonia. É por isso que “meu coração não tem memória / nem sabe decorar / então decola”. Corpos trans que nos transmutam, pois se “a moda agora é ser sóbria, nós não podemos ser”. É porque “é uma questão política: o contraste é estratégia de quem milita a alegria”.

Trans Formas São é também leveza e beleza, “com os dois pauzinhos, que às vezes se esfregam aligeirados e outras que se atravessam como pontes”, criando conexões, rasuras e misturas no “perder-se entre outros corpos”. Sem esquecer de “respeitar o tempo”, lograr o tempo e aquela “puta censurada suposta martelada”.

Bom, nem todos os poemas couberam nessa leitura, mas como abarcar toda essa imensidão?        “e para amarrar essa corda / andorinhas passarão” – Mas #elenão!

 

Mayana Rocha Soares é feminista interseccional, decolonial e sapatão. Doutoranda no programa de pós-graduação Literatura e Cultura (PPGLITCULT/UFBA). Mestra em Estudo de Linguagens. Graduada em Letras e Ciências Sociais.

 

 

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