Aperitivo da Palavra I

UMA FORMA DE CONTEMPLAÇÃO

 Por Sandro Ornellas

 

 

A teoria da felicidade é o sétimo livro de Kátia Borges, primeiro de crônicas, publicado no final de 2020 pela Patuá. O livro ideal para uma hora tão desidealizada como a da pandemia em que todos nos metemos e não sabemos como sair. Mas o que à primeira vista pode parecer algo escrito com tino comercial para a sobrevivência nesse contexto, é na verdade fruto de alguns anos de exercício semanal da autora na crônica, conforme podemos acompanhar no jornal Correio da Bahia.

Quem conhece a poesia de Kátia, reconhece seu estilo, temas e atmosfera. E até pode confundir alguns dos textos com poemas – o que não seria errado, já que a crônica é um gênero eminentemente fronteiriço e híbrido, misto de jornalismo, literatura, memorialismo, comentário e, entre os melhores, poema em prosa. E o Brasil a elevou ao estatuto de arte no distante século XX, com nomes de peso praticando-a, de João do Rio a Drummond, passando por Bilac, Bandeira, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues e Rubem Braga. Nas últimas décadas, quando o pragmatismo neoliberal assumiu nossos desejos mais íntimos, a crônica perdeu espaço nos jornais para o artigo de opinião, transbordando sangue nos olhos, urgência político-institucional e descartabilidade crítica, tão típicas do nosso tempo de iscas para o agressivo debate público.

Daí eu sentir uma profunda lufada de ar fresco durante a leitura da A teoria da felicidade. A promessa do título se cumpriu à risca e abriu uma janela na sufocante quadra em que vivemos. A “teoria” anunciada se faz na contemplação e observação (do grego, “theoría”) lançada para os minúsculos instantes que só notamos se suspendemos o fluxo ininterrupto do tempo e detemos nosso olhar na captura dessa felicidade. Logo em seguida perdida.

É, portanto, do tempo que Kátia fala. Não do “nosso” tempo, da nossa “contemporaneidade” compartilhada, mas do que há de contemporâneo a todos os tempos, entre todos os tempos. Aquele átimo de poesia que a fotografia consagra nos instantes eternizados. Kátia os captura pelas palavras, transformando-os em imagens. Em crônicas. Em poesia.

Há qualquer coisa de fragmentário nessas imagens escritas. São mesmo fotografias, não filmes. Em vários fragmentos, percebo Kátia costurando assuntos como quem caminha pelo centro de Salvador, não com o objetivo de chegar a qualquer lugar que a coloque à salvo e em melhor posição (impossível nessa cidade), mas desejando se equilibrar (física e emocionalmente) em meio ao violento giro das informações, das vozes, da memória e dos acontecimentos. Numa única crônica, os assuntos se sucedem com inteligente fluidez, sem qualquer pretensão a esgotá-los, ensiná-los ou dar lição de moral crítica. A quem assim deseja, ela apenas diz, no início de “As pequenas vilanias do cotidiano”: “Entrego a vocês a nobre missão de tomar conta do planeta. Fiquem com ela, resolvam todas as pendências seculares, revolvam os arquivos e os acervos, estabeleçam um novo cânone. Se preciso, lutem para subir algum pódio imaginário. Reservem espaço em suas estantes para expor os troféus colecionados, providenciem um armário com muitos cabides para o alinhamento das medalhas”. A poesia de suas crônicas está em fazer do fragmento a melhor forma para representar a felicidade que jamais se realiza por completo. É como se Kátia soubesse que conquistar completamente a felicidade arrisca a se confundir com o show de autoritarismo que presenciamos crescentemente. Por isso, apenas fragmentos de felicidade. Essa, sua teoria. E prática.

Por isso, também, certa melancolia nessa teoria. Tristeza mesmo, pois “para fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza”. Aquele tipo de nostalgia do perdido que faz da memória lugar privilegiado das crônicas (de Cronos, desnecessário lembrar) que dizem da passagem do tempo. E as memórias fazem desses textos de Kátia solo ideal, alternando o que há de pessoal, geracional e cultural, às vezes misturados a ponto de não conseguirmos discerni-los muito bem. Exemplares são “Sobre a fragilidade da esperança”, “Uma menina vinda de Marte”, “A aerodinâmica dos pássaros”, “A nostalgia, esse demônio”, “Felicidade a gente aprende; é preciso treino”, “O casaco esquecido de Janis Joplin”, “Na malinha do meu coração”, “O grande circo lírico”, “Sobre andar em silêncio”, “Dez coisas a fazer quando se está exausto”, “Civilidade e inutensílios”. Todos recheados de referências pessoais, coletivas, literárias, musicais e cinematográficas. E em tom distante do pedagógico, mas próximo do afeto reflexivo. Como é típico seu.

Nosso mundo – e não me refiro apenas à Covid ou ao sujeito que ocupa a presidência (eles são os últimos avatares de um longo processo) – tornou-se refém da ação produtiva e do desempenho performático. Ambos misturam no mesmo gesto trabalho e consumo e os mascaram como política e cidadania. Daí que ler alguém capaz de parar, olhar, pensar e escrever sobre isso com delicadeza, inteligência e comprometimento é coisa rara – ao menos para mim, e para quem fez das redes sociais seu habitat na última década.

Na crônica que dá título ao livro, Kátia apresenta-nos a teoria da felicidade de Albert Einstein. Ele teria escrito um bilhete a um camareiro do Hotel Imperial de Tóquio dando um conselho: “uma vida calma e modesta traz mais felicidade do que a busca de sucesso e a inquietação constante”. O bilhete fora dado como uma espécie de gorjeta ao camareiro e depois vendido por 1,5 milhão de dólares por seus herdeiros. A seguir, Kátia passa aos conselhos que Rainer Maria Rilke dá ao jovem Franz Xavier Kappus para que se torne poeta: “confesse a si mesmo: morreria se lhe fosse vedado escrever?”. Depois dos dois exemplos famosos de conselheiros, a autora apresenta-se como “conselheira compulsiva” e dispara o seu: “‘Cabeça erguida, sempre’, dizia minha mãe, diante de qualquer derrota”. Escrevendo com calma e modéstia, Kátia Borges reúne os conselhos de seus dois ilustres personagens e nos dá a melhor síntese do que é seu próprio livro: calma em tempos inquietos e modéstia em tempos soberbos são os ingredientes de uma escrita capaz de formular a teoria da felicidade possível nesta nossa época derrotada.

 

Sandro Ornellas é poeta, escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Bahia. Autor de Em obras (Cousa, 2019), Linhas escritas, corpos sujeitos (LiberArs, 2015), dentre outros.

 

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *