Aperitivo da Palavra I

Novas cartas para uma nova história

Por Marcos Pasche

 

 

O século XX foi para a arte ocidental um tempo especialmente marcado pela busca sistematizada de novas formas de expressão, as quais intervieram diretamente nas maneiras de criar e de perceber as obras. A poesia brasileira do período, muito interessada em emancipar-se esteticamente da Europa, enveredou-se pelos caminhos da transgressão de normas e da ruptura com a tradição, tendo como primeiro grande expoente dessa diretriz revolucionária o Modernismo, aparecido com a Semana de Arte Moderna, em 1922, em São Paulo.

No início da segunda metade do século, surgiu, também em São Paulo, um movimento que se consagrou por elevar a patamares maiores a reinvenção do discurso poético: o Concretismo. Idealizada e protagonizada pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e por Décio Pignatari, a poesia concreta ganhou espaços dentro e fora das faculdades de letras, foi saudada por outras vertentes artísticas (como a pintura e a música popular) e ainda hoje se mantém, sobretudo em termos de ideologia literária, como grande força de orientação para muitos poetas. Dentre os feitos proclamados pelos próceres e epígonos do Concretismo, destaca-se a primazia no tocante à produção de um “ismo” verdadeiramente surgido no Brasil, sem tomar de empréstimo alguma forma estrangeira para aplicá-la às letras nacionais.

Mas as vanguardas também cometem seus enganos, e por isso chama muita atenção um livro de 1954, pouco comentado à época de sua publicação (ocorrida três anos depois), e ainda hoje, sessenta anos após sua concepção, permanece algo desconhecido: Novas cartas chilenas, de José Paulo Paes. Numa época em que poetas digladiavam-se por conta dos rumos que a arte do verso deveria tomar, polarizando suas ideias entre vanguarda e tradição, é interessante notar que o livro de Paes afasta-se desse maniqueísmo, dirigindo suas atenções à memória nacional e estabelecendo uma tensão entre história e historiografia digna das melhores páginas das teorias historicistas, como já se percebe em “Ode prévia”, poema de abertura:

 

História, pastora
Dos alfarrábios.
Meretriz do rei,
Matrona do sábio (…).

Histriã do rico,
Madrasta do pobre,
Copo de vinagre,
Moeda de cobre.

Estrela da manhã,
Mapa ainda obscuro.
História, mãe e esposa
De todo o futuro

 

As Novas cartas chilenas foram lançadas em 1957, no sétimo volume da Revista Brasiliense, célebre veículo da intelectualidade da esquerda brasileira (e, recentemente, foi reeditada na Poesia completa, de José Paulo Paes). Seu nome é derivado da filiação a uma importante obra da literatura nacional: Cartas chilenas, livro atribuído a Tomás Antônio Gonzaga, e que em meados de 1789 começou a circular de maneira clandestina em Minas Gerais, denunciando satiricamente os problemas da administração do governador Luís da Cunha Pacheco e Menezes, cognominado na obra como Fanfarrão Minésio. Apesar da íntima relação, os livros possuem peculiaridades marcantes, que na Brasiliense foram apontadas em prefácio de Sérgio Buarque de Holanda: “A diferença aparentemente mais importante à primeira vista é a falta de Fanfarrão ou de algum personagem concreto que faça as suas vezes. Mas não estava já ele morto quando circularam aquelas outras cartas chilenas? Não, o Fanfarrão continua a existir e está presente em todas as páginas deste poema (…), subdividido em mil fanfarrões, sempre cheios de audácia e pompa vã”.

E é a partir disso que o livro de José Paulo Paes alcança seu grande fator de distinção. Enquanto o Concretismo, a estética da moda, aprofundava seus exercícios metadiscursivos, e uma outra linhagem poética – enquadrada na vaga denominação Geração de 45 – abominava as inovações para reivindicar espaço para uma poesia de inspiração clássica, as Novas cartas chilenas fazem da reflexão crítica sobre a vida nacional a sua razão de ser: “Os bandeirantes heris, continuados/ Em capitães de indústria, preterindo/ O sertanismo pela mais-valia”, diz o poema “Por que me ufano”, ácida síntese dos momentos decisivos da história brasileira.

A singularidade do opúsculo de Paes não significa ausência de apuro formal. A leitura atenta do livro deixa perceber um poeta altamente familiarizado com as diversas técnicas da escrita em verso, além de revelar que a obra do autor atingia maturidade ainda não vista em seus dois primeiros livros, O aluno (1947) e Cúmplices (1951). Davi Arrigucci Jr., em “Agora é tudo história” (texto de apresentação aos Melhores poemas de Paes), diz que Novas cartas chilenas caracteriza “a fórmula pessoal que lhe permitia ao mesmo tempo reler a tradição, glosar lições do passado (como ao reassumir o tom satírico das Cartas chilenas para falar do presente), aceitar ou não procedimentos da vanguarda coetânea e inserir-se, com consciência irônica e carga crítica, munido de recusas necessárias e linguagem sob medida, na perspectiva do mundo contemporâneo”.

É o exercício de reler a maneira como fatos importantes da história do Brasil foram inseridos no imaginário nacional que dá ao livro suas páginas mais brilhantes. Seguindo a disposição cronológica convencional, as críticas do poeta recaem inicialmente sobre os fundadores do País, como se vê em “Os navegantes”: “Achar é nossa lida mais constante/ E lucro nosso empenho mais vezeiro:/ Hemos a gula vil do mercador/ Num coração febril de marinheiros”.

Avançando algumas páginas, outros atores do teatro brasileiro entram em cena para também serem desmascarados. Por conta disso, o poeta constrói um discurso com a dicção própria daquele que é desmerecido, criando o seguinte efeito: não há alguém falando sobre os personagens da história nacional, são eles que falam, inserindo em seu próprio discurso a confissão das atrocidades que efetuaram. É o que ocorre em “A mão-de-obra”, rasura da Carta do achamento, de Pero Vaz de Caminha: “São bons de porte e finos de feição/ E logo sabem o que se lhes ensina,/ Mas têm o grave defeito de ser livres”; e também em “Testamento”, este versando sobre a herança dos bandeirantes:

 

Alfim, sob o da morte agro comando,
Terminamos a dada, perdoando
A nossos netos o serem bacharéis
E ao bandeirismo mostrar revéis,
Pois que no latifúndio e na finança
Também se alcança, ao cabo, essa abastança
Que apaga o crime e propicia a glória
Do bronze, onde dormimos, pais da História.

 

Mais à frente, a fase colonial cede espaço ao tempo do Brasil já emancipado. Lúcido, José Paulo Paes percebe que apesar das mudanças políticas, a realidade nacional não se modificou estruturalmente. A exemplo das dicotomias com que a poesia do século XX foi segregada, as soluções para os entraves da política nacional entraram, no século XIX, num enganoso jogo de cara-ou-coroa. Por essa razão o livro contesta a monarquia, – “Sejamos, na cozinha, escravocratas,/ Mas abolicionistas de salão:/A dubiedade é-nos virtude grata” (“Cem anos depois”) –, bem como, no mesmo poema, desnuda hipocrisias republicanas: “Vamos fazer a República,/ Sem barulho, sem litígio,/ Sem nenhuma guilhotina, / Sem qualquer barrete frígio”.

Desviando-se do discurso oficial da história, o livro é solidário àqueles que pagaram um preço maior por se oporem, por razões diversas, ao poder instituído, “Muito antes que vingasse a recente proposta acadêmica de fazer História ‘pela ótica dos oprimidos’”, diz Alfredo Bosi no ensaio “O livro do alquimista”. No lance mais bem realizado do volume – o poema “Os inconfidentes” –, narra-se dramaticamente todo o movimento que levou Tiradentes à morte: “Um minuto de séculos e o corpo/ Tomba no vácuo, fruto decepado./ O calvário cumpriu-se. A luz se apaga/ Nas pupilas imensas do enforcado”. Mas aqui história e poesia unem-se para imprimir no tempo e na memória coletiva o contragolpe às verdades dos que prenderam, torturaram e assassinaram em nome da ordem e da justiça:

 

Mas reparai, cavalheiros
Da Igreja como do Estado,
Que um herói ficou de fora,
Embora fosse enterrado.

Tiradentes se recusa
Ao vosso fácil museu,
Panteon de compromissos,
Olimpo de camafeus.

Prefere a praça plebeia
Ao pó das bibliotecas
Onde, a soldo, vosso escriba
Faz da verdade peteca.

 

Em meio à acidez dos questionamentos, há espaço para uma nota de sóbrio (e irônico) otimismo, não por acaso ao fim do livro: trata-se de “Por que me ufano”: “O sol do grão, a esperança da raiz,/ Sob o signo do Cruzeiro insubornável,/ Tendo em conta passados e futuros,/ Sempre me ufano deste meu país”. As Novas cartas chilenas, que já haviam contrariado as tendências da poesia e da historiografia nacionais, contrariam agora a própria postura cortante do livro que passa em revista o passado da pátria, ao dar pistas de um sorriso à “mãe gentil”. Ao final da leitura, nada garante que outro Brasil será possível. Porém, após a mesma, talvez não seja mais possível vê-lo como antes.

 

Nota: O ensaio “O livro do alquimista”, de Alfredo Bosi, é o prefácio de Um por todos, poesia reunida de José Paulo Paes lançada em 1986. O ensaio foi reproduzido em Céu, Inferno, do referido crítico.

 

(Marcos Pasche nasceu no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1981. Cursa doutorado e leciona Literatura Brasileira na UFRJ. É crítico literário, autor de “De pedra e de carne: artigos sobre autores vivos e outros nem tanto”. Neste momento, pede aos acidentais leitores que não deixem de assistir ao documentário “Garapa”, de José Padilha)

 

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