Aperitivo da Palavra II

ABISMOS OBSCUROS DE “OS ENCANTOS DO SOL”

Por Luciana Oliveira

 

 

“E é sempre sobre ruínas que se faz uma vida”. Este é um dos muitos aforismos com que topam os viajantes que aceitam embarcar nas histórias cruzadas e ardentes de Os encantos do Sol, último livro de ficção de Mayrant Gallo, lançado no início de maio deste ano pela editora Escrituras. Conhecido como poeta e contista perspicaz, Mayrant agora resolveu nos fisgar com uma narrativa mais longa, que carrega, no entanto, a marca registrada do seu estilo muito contemporâneo: o ritmo acelerado que prende a nossa atenção desde a primeira palavra até a última ironia, assim como a fragmentação narrativa, os cortes de cenas, as mudanças temporais e espaciais; tudo no estilo do melhor cinema moderno, nos envolvendo de maneira irredutível numa espiral movente, que, não raramente, nos faz sentir certa vertigem.

Aliás, é preciso dizer que a novela (conforme o autor classifica o livro), cujo título nos guia para o lado místico e fantástico que compõe todas as coisas comuns, pode ser encaixada entre as narrativas pós-modernas, não apenas pelas técnicas apresentadas, mas, sobretudo, pelos assuntos que movimentam os personagens, tão improváveis como são todas as pessoas de carne e osso, com as quais esbarramos durante a nossa brevíssima caminhada.

A vida de um escritor de meia idade, confuso e deslocado dos espaços em que transitava, e que parece precisar entrar em contato – quase sempre superficial – com as vidas de outras pessoas para se convencer de que jamais poderá ser e sentir como elas, aparece como ponto de partida para as histórias. Ele não compreende as necessidades alheias, e quase nunca quer compreender. Percebe-se mesmo inabilitado para entender o que ele próprio demanda, ao mesmo tempo que se sente apático demais para mudar as situações que vivenciava.

Então Dino Endre, como se chama o personagem, é o retrato de um homem que tem problemas para definir coisas que geralmente julgamos cruciais para traçarmos os roteiros de nossas viagens, como o tipo de afeto que sentimos pelas pessoas, o objetivo de estarmos ao lado delas e, principalmente, o que devemos esperar da vida.

 

Mayrant Gallo / Foto: arquivo pessoal

 

Casa-se, descasa-se, aceita fazer trabalhos que não lhe apetecem, bem como manter relações que não o satisfazem, e tenta conviver com tudo que lhe espinha a alma, como se portasse um enorme peso inútil, mas de cuja presença incômoda já não pode prescindir. Aliás, sabe que suas questões insolúveis são as únicas coisas que de fato lhe pertencem. Então, o que tem o narrador d’Os encantos do Sol em comum conosco, homens e mulheres destes tempos? Quase tudo, a não ser por uma certa indiferença com relação ao acaso que governa todos os destinos. Dino sabe que não adianta lutar contra a mais impalpável das verdades: A vida é incontrolável. Daí o narrador citar Albert Camus, que nos aponta de forma contundente: “Não existe destino que não se supere pelo desprezo” (CAMUS, 2013, p. 113)

Os acontecimentos da vida de Dino são dispostos em vários capítulos, alguns suportando narrativas independentes, que imprimem marcas e deixam ecos no todo da história, que nunca chega a ser inteira. Condiz perfeitamente com os retalhos da colcha que se tornam nossos dias imersos em mil pequenos acontecimentos e que, chegando ao final, nos deixam apenas uma sensação estranha de um delírio incoerente. Assim, Os encantos do Sol acontecem a partir da ideia de que, como disse alhures o poeta espanhol Calderón de La Barca, “A vida é um bem ilusório porque tem a duração e a consistência dos sonhos”. Talvez por isso os capítulos do livro sejam curtos, alguns representado flashes de pensamentos.

Nos relatos, está presente tudo que é demasiadamente humano, inclusive as nossas ficções de cada dia, sem as quais talvez, sequer, existiríamos. Há também a reflexão acerca da ideia midiática de amor que se tornou tão banal quanto irreal; a impossibilidade de felicidade na profundidade do eu e de sua manifestação fácil, quase sempre no que há de mais material e superficial, como no sexo, nos desejos que sentimos e, principalmente, nos que esperamos despertar. Ainda comparece ali o pavor da solidão e da rejeição, e as formas de como nos deixamos cooptar para não termos de enfrentá-lo. Mas, para além de qualquer outra coisa, Os encantos do Sol nos ensina que são nos abismos mais obscuros que encontramos o germe mais genuíno da vida.

 

(Luciana Oliveira é doutoranda pelo programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e Mestre em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS))

 

 

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