Aperitivo da Palavra II

Affonso SÍSIFO de Sant’Anna

Por W. J. Solha

 

 

 

Zaratustra – aos trinta anos – desce a montanha pra levar sua mensagem à humanidade, que está lá embaixo.  Sísifo, aos setenta e tantos, cansado de tanto sacrifício por nada, faz o mesmo, mas pra se despedir. Pois nós – seus leitores ou não – fomos contados, medidos e pesados por ele… com resultado bastante negativo:

A mim me tocou
viver numa época em que miúdos seres
rastejam sem visão no pó do instante
(DEPOIS DE TER VISTO)

Não me tragam o odorento lixo da estupidez urbana.
(RITUAL DOMÉSTICO)

Onde estão esses
que ao nosso lado
parecem tão passivos
com o ar silencioso
e corrosivo?

Onde estão?

Estão apenas vivendo
morrendo
como sub ser vivos.
(ONDE ESTÃO?)

Banqueteiam suas fezes em alarido
como se ouro fossem
e dançando à borda do abismo
se rejubilam
– com a vertigem.
(DEPOIS DE TER VISTO)

E isto – em ESCLEROSE E\OU MALEVITCH – é terrível:

Depois de aprisionar figuras
nas molduras de seus quadros
chegou ao ápice da arte
– e do espanto:
Emoldurou
– o branco sobre o branco. 

Sísifo, ante tal pedra no meio do caminho, dá um basta. Affonso Romano de Sant´Anna, que além de grande poeta é um contumaz viajante, dá com ela encalhada no Egito:

 

 

 

Vê, inacabado porque fraturado, o que seria o maior obelisco da terra em que tudo era gigantesco:  sua concreta pedra de Sísifo\Drummond. E escreve um dos melhores poemas de seu novo livro, com uma forte compulsão de se servir de um recurso… concretista:

Esse obelisco     inacabado
fora de Assuam     esse obelisco
o maior de todos    com a quarta
face não cortada     da pedra no chão
esse obelisco sem     inscrição alguma
a não ser as rachadu     ras do terremoto
que o partiu  esse  ob     elisco
abandonado ontem  ho   je visitado
por multidões atônitas    esse obelisco
inerte tem algo huma     no perturbador
em torno dele assim     morto e torto
estirado como se fo    sse um osso
ou algo nosso inse     pulto em torno
dele circulamos o     lhando o chão
como se algo e      m nós também
tivesse se par    tido
sem alcançar a perfeição

“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”

Embora a tradição diga e Vinicius sustente que “poeta só é grande se sofrer” e o tema da proximidade da morte seja um achado – no Sísifo desce a montanha – do porte do corvo repetindo o nome da finada Lenora pro amante desconsolado – em Poe -, é claro que (para mim, pelo menos, que o considero nosso maior poeta vivo – e também, talvez, morto) não existe motivo real pro desconsolo. Pelo contrário: Affonso deixa o nome na História de nossa literatura, e – enquanto vai pra Cartago e Assuam, Chicago mais Teerã – nos intervalos descansa carregando pedra:

Sinto que o incomoda o fato de sua poesia, em certa fase, ter tomado partido por causas arriscadas, por conta dos sub ser vivos. Ele diz, em PAREM DE JOGAR CADÁVERES NA MINHA PORTA:

Dei de mão comendas e insígnias
não tenho mais que na praça erguer protestos
e distribuir esmolas não é mais a minha sina.
Acabo de entrar no Pavilhão da Harmonia Preservada
e me liberto
– na Cidade Proibida na China.
(…)

Impossível ficar no tempo que me coube
o  tempo todo
Preciso repousar num campo de tulipas
reaprendendo a ver o que era o mundo
antes de
como um Sísifo moderno
desesperado
julgar
– que o tinha que carregar.

A epígrafe de seu livro, a propósito, vem de Clarice Lispector:

A gradual deseroização de si mesmo \ é o verdadeiro trabalho que se elabora \ sob o aparente trabalho.

Deseroização.

Seria isto?:

Olho e acaricio meu cão.
e apagando a luz da sala,
tranco as portas
exilando o medo.
(AQUELAS QUESTÕES)

É estranho ouvir sobre tal busca de autodesmistificação em Affonso, que me foi apresentado por Sérgio de Castro Pinto há séculos, e que me lembrou, na época – pelo gigantesco A Catedral de Colônia, que tentei emular com meu Marco do Mundo, e pelo bravo QUE PAÍS É ESTE?, sendo ele próprio de ombros largos e grande charme –  a mais marcante figura épica de minha adolescência:

 

 

 

 

Mas o tema é A Morte.

Sou apenas um pouco mais “novo” que ele. Affonso é de 37; eu, de 41. Tenho, portanto, sentido a aproximação dela, também. E, como sempre me pareceu caber à poesia tirar as palavras de nossa boca, os melhores momentos do Sísifo desce a montanha são – para mim – aqueles em que o poeta aborda – heroicamente, apesar da inspetora Lispector – o tão temido tema. PREPARANDO A CREMAÇÃO, por exemplo, é antológico. Pela simplicidade veraz ou feroz com que Affonso revela ter feito o que ainda não me decidi a fazer, embora seja um ato inevitável:

Levanto-me. Vou ao cartório
autorizar minha cremação. Autorizar
que transformem
minhas vísceras, sonhos e sangue
em ficção.

O que pode haver
de mais radical?
Assinar este papel
tão simples
tão fatal.
Autorizar a solução final
de todos os poemas.

“Solução final”. Veja a sutileza com que ele nos remete à Solução Final da Questão Judaica, como foram considerados os terríveis crematórios nazistas nos campos de concentração. Mais sutil ainda é o fato de que ele não lamenta ter o corpo em chamas e reduzido a cinzas, mas “todos os poemas” desintegrados com ele.

Confirmando a imagem que sempre tive a seu respeito, o poeta tem amor intenso pela vida. Daí que é comovente vê-lo dizer mais adiante:

Há muito venho me preparando
me despedindo do sorriso da mulher, das filhas
da rua onde diariamente passo
me despedindo dos livros
vizinhos e paisagens.

Claro: em RITUAL DOMÉSTICO ele nos fala do aconchego do seu lar, com toques de extrema delicadeza.

Toda noite
acendo algumas velas na sala
enquanto minha mulher prepara o jantar.
somos nós dois
e essa cachorrinha meiga
com seu estoque inesgotável de afeto.

Essa cachorrinha meiga é presença recorrente no livro. Algo como a cadela Baleia de Vidas Secas ou o cão interpretado por Servílio de Holanda no espetáculo Vau do Sarapalha. Num desses instantes, Affonso se excede. Talvez haja me comovido mais porque tive, durante anos, uma pequinês chamada Lady, como a de Disney, e vi em casa cenas como essa, fantasticamente flagrada em LEVARAM OS SEIS FILHOTES. Não à toa os olhos de minha mulher marejaram quando li para ela:

Levaram os seis filhotes dessa cachorrinha
que chora
geme de desespero
procura suas crias pelos cantos da casa
sob a mesa
no jardim
na lareira
e pede socorro com seus olhos
exigindo explicação.

“E pede socorro com seus olhos exigindo explicação”!

É com detalhes assim que Affonso ressalta o apego à vida que sente estar por perder. Ainda em PREPARANDO A CREMAÇÃO, diz:

Olho cada parte de meu corpo
que vai se desintegrar:
mexo os dedos, vejo as veias
e no espelho esse olhar
que nada mais verá.

Já me vi fazendo o mesmo inúmeras vezes e me pareceu bem rever isso em versos.

Mas de repente, em COMPREENSÃO – num surto de otimismo – ele conclui que não há morte, tudo é recomeço. Daí que – tal qual num sonho – implicitamente evoca para si – ao optar pela cremação – um fim igual ao do profeta Elias… com o que tudo se transfigura:

Espero que um carro de fogo me arrebate numa tarde dessas
e sem estremecimento
me dissolva de vez na eternidade.

Mas  enigmas o cercam de todo lado e o angustia saber que a Esfinge vai devorá-lo sem que eles os decifre. No INDEPENDEM DE MIM diz:

Meus rins, meu pulmão, meu fígado
(e o coração)
não carecem que lhes ordene
o que fazer.
Na verdade me antecederam.
me hospedaram apenas. E se rebelam
se os forço a me obedecer.
são autônomos
mais que autômatos.
Eu é que sou essa estranha coisa
pensando movê-los.
(…)

E aqui termino, anotando o que ele diz a respeito, NO LABIRINTO:

Habito o mistério que me habita

O que me remete a uma frase do Ulisses que vivo me repetindo:

– Falar do mistério no seio do próprio mistério: isso é arte.

É, na verdade, arte.

 

 

 (W. J. Solha lançou Relato de Prócula em 2009, pela A Girafa, romance escrito com incentivo da Bolsa da Funarte de 2007. Em 2006, obteve o Prêmio Graciliano Ramos por sua História Universal da Angústia, Ed. Bertrand Brasil. Em 2005, o Prêmio João Cabral de Melo Neto pelo poema longo Trigal com Corvos, ed. Palimage, de Portugal. Em 2011, publicou o romance, Arkáditch, pela Ideia Editora. Recentemente, lançou seu mais novo livro, o poema longo Marco do Mundo)

 

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6 Comentários

  1. De primeira grandeza .. adorei..um primor !

  2. comoventes as palavras de solha sobre o belíssimo livro de affonso, romano, “nosso maior poeta vivo – e também, talvez, morto”. é um luxo conhecer este poeta tão grande quanto generoso. um abraço aos dois – solha e affonso.

    parabéns a fabrício brandão e leila andrade por mais esta irretocável edição de diversos afins!

  3. exclua-se a vírgula desnecessária… risos

  4. Affonso é Deus e ninguém me tira isso da cabeça. Deus é poeta, é caneta e papel. É palavra affonseada.

    Lindo o livro, lindo tudo!

  5. Que bom sua corajosa persistencia em continuar trazendo pra essa via de tudo um algo de tanta qualidade como e Diversos Afins, Fabricio.

  6. Ouvi muito esse mito de Sísifo de meu pai, quando pequena, média e ainda ouço de grande, para ser mais exata ele falou nela no sábado passado.
    Vou procurar o livro para presenteá-lo.
    A “poesia tira as palavras de nossa boca”, de nosso coração, de pedras, portas, de passarinhos, de onde não há palavras, de imagens, aromas, sabores, sons, sentimentos…
    Penso que:
    Toda pergunta
    Toda resposta
    O que se entende
    E o que não tem explicação
    De amor ou de dor
    Com começo, meio e fim
    Ou em constante construção
    De autores famosos
    Ou de anônima autoria
    Toda palavra que fala a alma
    É poesia

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