Aperitivo da Palavra III

Os Trezentos curtas de Wilson Guerreiro

Por W. J. Solha

 

Comemorando seus 70 anos de idade com estes haicais de Grãos de Esperança – 300 haikais guilhermianos, que acaba de sair pela editora Chiado, de Portugal, ele me lembra que em 2011, seis integrantes do grupo COMPOMUS, da UFPB, criaram – em comemoração dos meus mesmos 70 – a Cantata Bruta,  a partir de curtíssimos contos meus sobre a violência contemporânea.

Estou me exibindo?

Não.

É que, nesse concerto, um trecho particularmente me deslumbrou. De quem, caramba?!

– Wilson Guerreiro!

Estes haicais foram, pra mim, nova surpresa. Daí que parti pra Wikipédia, para saber, afinal, “com quem estava lidando”! E… meu deus!

Wilson Guerreiro nasceu em Corumbá, Mato Grosso do Sul, 1945. Em 1959, mudou-se com a família pra Campinas-SP, e em 66 ingressou no ITA – Instituto Tecnológico da Aeronáutica, como Engenheiro de Eletrônica. Mestre em Engenharia Elétrica pela Escola Politécnica da UFPB, Campina Grande (1973), Master of Science (M.Sc.) em Eletrônica pela University of Southampton, Inglaterra (1975), e Ph.D. em Eletrônica por essa universidade (1979), atuou como professor do Departamento de Engenharia Elétrica da UFPB no período 1971-1999,

E o que tem isso a ver com haicais? Calma. Prossigo de Wikipédia:

Teve sólida formação musical em cursos de composição, harmonia e instrumentos, tendo estudado com renomados professores, entre os quais Eli-Eri Moura, Marco César de Oliveira Brito e Liduino Pitombeira. Sua produção inclui peças para diversas formações camerísticas, orquestra sinfônica e trilhas sonoras para teatro e vídeo. Recebeu o Prêmio de Melhor Música no VI Festival Nacional de Teatro de Guaçuí, Espírito Santo (2005), e no XIII Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga, Ceará (2006), pela trilha sonora, composta em parceria com Marcílio Onofre e Samuel Correia, do monólogo gogoliano Diário de um Louco, dirigido por Jorge Bweres e André Morais.

Wilson Guerreiro se descreve no haicai 282, desta edição:

Vivo sem conflito,
na calma, mas a minh’alma
busca sempre o agito.

Genial!

E vamos aos haicais. Guerreiro assume, no subtítulo de seu livro, que os seus são guilhermianos. Como Guilherme de Almeida (poeta paulista, 1890-1969), estabeleceu para si tercetos de 5, 7 e 5 sílabas, rimas do primeiro com o terceiro verso, o segundo com rimas internas na segunda e sétima sílabas. Também assimilou o espírito guilhermiano da coisa:

Haicai é um mero enunciado: lógico, mas inexplicado. Apenas pura emoção colhida ao voo furtivo das estações, como se colhe uma flor na primavera, uma folha morta no outono, um floco de neve no inverno.

 Sobre essa base… técnica surge o estilo Guerreiro, cuja primeira característica é a preocupação social. E outra: paixão pelo sertão nordestino brasileiro, patético e, muito mais: estético. Tanto, que as grandes obras de arte do país são todas dessa região ou sobre ela: Os Sertões, de Euclides da Cunha, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, bem como os filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, Os Fuzis, de Ruy Guerra, e novamente Vidas Secas, agora de Nelson Pereira dos Santos. Destaque para A Pedra do Reino, do Ariano, e Dom Sertão, Dona Seca, de Otávio Sitônio Pinto. A Portinari essa área rendeu a impactante série de quadros Flagelados ou Retirantes. Ao poeta João Cabral de Melo Neto, deu Morte e Vida Severina, grande poema tornado popular pela música de Chico Buarque. E bombou na Globo, a novela Velho Chico. Mas eu falei de duas características marcantes destes haicais. Uma terceira: rigor. Músico da Orquestra Sinfônica da Paraíba, Guerreiro – metaforicamente – confessa:

Sustento meus filhos
com canto. A viola, portanto,
deve andar nos trilhos.

Quarta: no espaço tão exíguo do férreo terceto de cinco-sete-cinco sílabas, próprio pra poucas imagens, ele às vezes nos entrega uma bela natureza-morta:

À mesa, moqueca
com coco e pimenta, e um pouco
de chá na caneca.

Mais fotógrafo que pintor – pelo rápido clique – colhe cenas da caatinga, a selva selvaggia de exclusividade brasileira, aspra e forte, como nesta série de cinco haicais, que tiro da ordem, numa atrevida “montagem”:

Sertão. Descampado
sem sombra. A todos assombra
a morte do gado.

No pequeno aterro,
exposto ao tempo, ali posto
já morto, um bezerro.

Sofrida imburana
insiste, mas não resiste
à seca tirana.

No bruto sertão,
carcaças e mais carcaças
dispersas no chão.

Nunca se viu tanta
carência. Uma consequência:
o nó na garganta.

Veja a força disto:

No rosto, a dor muda
de quem tem sede e também
passa fome aguda.

E isto, que nos espanta pelo último verso:

Lar de massapê:
janela, porta, cancela,
antena e tevê.

Claro, nem tudo é trágico. Ou, bem: é, mas – se não desconcertante – deslumbrante:

Solitária flor,
num sulco do solo inculto,
em pleno esplendor.

Guerreiro, porém, supera o fotograma e ousa, quase sempre, um breve… cinema.

A mãe chama o filho
à mesa posta. Surpresa:
só cuscuz de milho.

Põe movimento até para o que não o tem:

Os dedos aflitos
dos galhos de alguns carvalhos
buscam o infinito.

O que tem a ver com outro espetáculo triste que se vê em todo o Brasil:

Entre as grades de aço,
mil mãos suplicam em vão
por mais ar e espaço.

Aqui, a curta ação é promovida por três verbos:

Maitaca chilreia,
quati treme. Sucuri
no chão serpenteia.

Como aqui:

Vento rodopia,
avança mais forte e alcança
frágil moradia.

Ou aqui, em que um dos verbos – queimar – implícito, é limitado pela expressão latina do segundo verso, e se solta, implicitamente, no terceiro.

Seca. Cai a tarde.
Um foco de fogo in loco,
e toda a mata arde.

Aqui, Guerreiro parte para quatro verbos, que são como claquetes no poema:

O sapo coaxa.
A cobra dá o bote e… sobra:
ao sapo não acha!

Take 1 – o sapo coaxa.
Take 2 – a cobra dá o bote.
Take 3: e… sobra.
Como?
Take 4: ao sapo não acha.

Esses… filmetes prosseguem num momento em que ele – abandonando o campo, já no final do livro – parte pro que vê nas cidades. “Estiremos” os haicais, e… cinematograficamente… montemo-los também:

O povo se atiça em becos, ruas, botecos: clama por justiça. // Nas ruas, na praça, país melhor, mais feliz, reivindica a massa.// O povão audaz protesta e se manifesta sob bombas de gás!// Um estampido alto e seco ecoa no beco. Corpo jaz no asfalto.// O Estado recua diante da voz vibrante do povo na rua.

– Atenção: Luz! Câmera! Ação!

Take 1: Árido sertão.O cacto floresce em pacto co’a essência do chão.
Take 2: Tragédia anunciada: grotesca seca, dantesca; gente em retirada.

Bem, isto é uma espécie de trailer. Cabe ao leitor, agora, puxar o freio de mão e, em câmera lenta, usufruir – de um a um – estes belos achados e centenas de outros. Guerreiro, ao contrário do sertão, é tão generoso quanto muito farto.

W.J. Solha lançou Relato de Prócula em 2009, pela A Girafa, romance escrito com incentivo da Bolsa da Funarte de 2007. Em 2006, obteve o Prêmio Graciliano Ramos por sua História Universal da Angústia, Ed. Bertrand Brasil. Em 2005, o Prêmio João Cabral de Melo Neto pelo poema longo Trigal com Corvos, ed. Palimage, de Portugal. Em 2011, publicou o romance, Arkáditch, pela Ideia Editora, pela qual também lançou seu segundo poema longo, Marco do Mundo, em 2012, a que se seguiu Esse é o Homem, em 2013. Em 2015, lançou “DeuS e outros quarenta PrOblEMAS” pela Editora Penalux.

 

 

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