Aperitivo da Palavra

Quando Deus não está olhando

 Por Sérgio Tavares

 

bjonaparede

 

 

Penso que é papel do resenhista analisar um livro onde nem mesmo há literatura. Assim, chama atenção o fato de que, dois anos depois de lançado, “O beijo na parede”, do carioca, radicado em Porto Alegre, Jeferson Tenório, já se achar em sua terceira edição. A despeito da influência (negativa ou positiva) que tal informação carrega, a explicação está exatamente onde há literatura. Tenório resgata, em sua estreia no texto longo, um gênero soterrado nos anos 80: o romance social. Em meio à ditadura do eu, dos enredos autocentrados, autoficcionais, sua trama rebate no outro, no expediente dos desvalidos, daqueles que existem abaixo da linha de visão da soberba. Enquanto a grande maioria dos novos autores brasileiros interioriza seus passos, Tenório caminha mundo afora, pelas vielas do desamparo.

O comando da narrativa cabe a João, um menino de 11 anos “meio precoce”, que, embora puxe uma fieira de desgraças e de mortes, aprendeu que “chorar não resolve muita coisa”, pois, “de uma forma ou de outra, temos sempre que carregar alguma dor”. Depois de perder a mãe de maneira fulminante devido a um câncer desconhecido, tem de viver pelos caminhos tortuosos do pai alcoólatra, pela rotina suja dos bares, na qual a negligência e o desafeto impõem a ferocidade do dia que engole o próximo com fome e sem cerimônia.

Do Rio de Janeiro, então muda-se para Porto Alegre, morando de favor na casa de parentes. A rescindência da embriaguez do pai, no entanto, irrompe conflitos e não tarda a serem expulsos, migrando para um quarto alugado, um “muquifo terrível”, em seguida para uma casa velha. Ali é que, depois de voltar da escola, descobre o pai enforcado e que, a partir daquele instante, não teria “mais tempo para ter infância”.

Passa a contar com a própria sorte, driblando os apuros do abandono com pequenos atos de resistência, até parar num abrigo para crianças. Dessa parte em diante, Tenório filia seu personagem-narrador a uma realidade crua e desesperançosa, antes explorada, na literatura brasileira, pelos olhos de Pixote, de José Louzeiro; Querô, de Plínio Marcos; e Pedro Bala, de Jorge Amado, em “Capitães da areia”.

Diante da orfandade, João vai recompondo sua família com despojos sociais; criaturas solitárias, marginalizadas, cuja vida “é feita para passar sem perceber que já se está vivendo”. Vai morar num cortiço, onde é “adotado” pela prostituta Estela. Lá começa a interagir com o travesti Verônica, a senil dona Dinorah e seu Ramiro, com o qual mais se apega. Do tempo em que seus pais ainda eram vivos, protege o fantasma do amor da mãe e um exemplar de ‘Dom Quixote’, que servia de calço para uma mesa. Nessa saga em busca “do responsável pela fraqueza dos homens”, na qual a percepção por vezes ingênua de mundo ainda conserva um risco de esperança, o velho Ramiro faz o papel de um tipo amargurado de Sancho Pança. ”Deus não gosta dos fracos, João”, sentencia.

De fato, Tenório deixa muito implícito sob essa camada epidérmica, mais dura e fria tal o concreto da parede que beija o narrador, pois “não tem ninguém para amar”. Por detrás desta voz convincentemente infantil, há ferrões pontiagudos que vão cutucando o leitor para questões como o racismo nos estados do Sul, a crença em pequenas epifanias e o descaso do sistema público para com os menores abandonados. “O beijo na parede” concentra uma existência incapaz de produzir heróis, pois também não consegue criar vilões. Quando Deus não está olhando (e me permito também utilizar de metáfora), todos são seres invisíveis.

Sérgio Tavares nasceu em 1978. É autor de “Queda da própria altura”, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês e o espanhol. Participa da edição seis da Machado de Assis Magazine, lançada no Salão do Livro de Paris.

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1 comentário

  1. ~
    Qiando Deus não está olhando, tudo fica mesmo invisívelvel – digo depois de perder,meu filho estupidamente.
    Parabéns pelo ótimo texto
    Maria Lindgren
    Felizes Festas!

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