Aperitivo da Palavra

TETELESTAI -sobre GLACIAL, o novo livro de Jorge Elias Neto

Por W. J. Solha

 

Glacial

 

Como diz T.S.Eliot, no meu começo está meu fim e em meu fim está meu começo, daí otítulo acima, que encontrei encerrando a obra em pauta, como se o volume editado pela Patuá fosse resultado de muito sofrimento:

Tetelestai *

João, 19:30,

………*Está consumado!

Descobri, ali, o fio da meada: a fé e sua perda estás empre ostensiva ou dissimuladamente presente em todo o GLACIAL. O poema “Paisagem”, por exemplo, tem como epígrafe trecho de um poema de Luís García Montero:

Cada tiempo de dudas
Necesitaunpaisaje

O céu se fecha.
Nuvens se entrelaçam
― íntimas .
Onde encontrar
um caminho sem cruzes?

Vê a montagem?:“Cada tempo de dúvidas”, “O céu se fecha”. E, com “Nuvens se entrelaçam – íntimas”, percebe-se que há no estilo de Jorge Elias uma certa combinação de palavras à maneira de Lorca: Árbol de Sangre, la tristeza sinojos, méduladel alma, Verde viento, silencios de goma oscura,  rosa de lacircuncisión, etc. O surrealismo – movimento a que o espanhol pertenceu – foi fortemente influenciado pelas teorias de Freud, enfatizando a função do inconsciente na atividade criativa. Justamente como uma reação a uma arte que estava destruída – olha a pedra no sapato do poeta capixaba – pelo racionalismo. O tom, aqui bem leonardesco – todo non finito e sfumato – se torna mais poético, fala mais.

“Onde encontrar/ um caminho sem cruzes?”

O trágico é que o poeta sabe, todos sabemos, que isso não existe. Passei minha mui distante infância ouvindo Orlando Silva cantar:

Sou um covarde e bem sei
que o direito é levar
a cruz até o fim,
mas não posso,
é pesada demais
para mim.

Há um poema de GLACIAL,“Rês”, em que Jorge Elias assume o papel da vítima, já que o dito uso da razão lhe é doloroso, uma cruz. Como se tivesse nascido em local demarcado pela estrela de Belém, diz:

Eis o meteoro /da impaciência / que destrincha a carne,/que fratura/o tempo e/me descobre/tenro,/palatável,/em meio/aos estilhaços/da urgência.

“Tenro” e “palatável”, porque está pra virar hóstia na própria Ceia. Por que, se perdeu a fé? Justamente porque resfriado nas /evidências da razão / – que não basta.

A razão não lhe basta. E ele diz em “Reinício” – entre mensagens cifradas:persigo sua imagem,/ Deus dos homens. Daí que ficamos com um poeta… relutantemente… místico, feito um Eliot, William Blake, um San Juan de la Cruz … “gauche”, como que por ordem do mesmo “anjo torto” de Drummond. No poema ‘Cronópio”, inclusive, ele se diz – contrariando Cristo – serfiel depositário de um torrão de açúcar, mas termina concluindo que Caronte – o barqueiro o inferno – aguarda o sal da terra. E aí, curiosamente, entramos no clima que justifica o título do livro:

O inverno é longo,
o bastante
para que a neve
reaja a esses
rudimentos de liberdade
extinta.

Que inverno? Suponho que seja o “inverno do nosso descontentamento”(the winter of our discontent, conforme diz Ricardo III na peça homônima de Shakespeare ). Seguem-se poemas que falam em desandada tristeza, desespero (“Simetria do Caos”), condenação de loucura (“Assim & Assado”) e, doutoralmente, concluo que – parece-me – nosso Doutor Jorge Elias Neto já sofreu muito, viu sofrer… e talvez tenha feito sofrer muita gente…

– Havia uma alternativa / em alguma gaveta / queimada para não morrer /de frio.// Uma aspirina /entre duas torturas.

Ele diz, no poema “Matilha”:

Nomeados
os lobos,
desembainhei os caninos
………..– incógnitos –
e ensaiei a dança
solitária
do uivo
na imensidão austral.

A vida, já dizia Voltaire – maniqueísta – quando não é complicação é “Tédio” – título, por sinal, de outro poema tenso, onde O nada /é um cansaço/que dá sono.

E eis aí outra forma do branco eterno, de GLACIAL: o nada. Jorge Elias fala, em “Fração do indizível”, numa …biografia/ de renúncias /e equívocos.Fala de solidão: Minha distância / não é exercício de retórica,/ apontamento /de um ególatra.

Mas por que é tão racional?

Não me cabe
o sedentarismo da crença,
o fervor
no púlpito.

Não me envaidece,
não me encoraja
(…) escovar os pelos
que agasalharam
erros.

Isso faz dele um dos “desterrados Filhos de Eva” – como diz a antiga oração –“gemendo e chorando neste vale de lágrimas”

Amanhecer

É setembro.
escorrem
as primeiras lágrimas
das montanhas dos Andes,

Veja – no final do poema “Sobre anjos e blasfêmias” – o Gênesis numa versão conto de fadas:

Só que um toque atrevido,
por delicado que seja,
faz desabar o enigma
(Chamam a isso: pecado.)

Enigma = pecado. Isso nos leva à velha estória:

E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente,
Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás;

Há uma culpa – máxima culpa, talvez- em jogo. E Jorge Elias diz, em Portal dos anjos:

Anjos …
Dou-lhes de presente
minha sanidade.
Sei o que me custará
rolar a cabeça no acaso …

Anjos de poeta não implodem,
esvaem-se da cabeceira
da cama do menino.
Retornam para a dimensão do sonho
que se teve
e se dispersou com a razão.

Anjos …
Retribuo com o poema a vigília
e peço que devolvam a Paulo
o patibulum e a culpa.

“Esvaem-se da cabeceira / da cama do menino”. Ah, caramba, eu mesmo tinha, em minha… cabeceira de menino…, um quadro em que um belo anjo da guarda acompanhava um casal de garotos atravessando uma decrépita ponte de madeira sobre o abismo, numa tempestade!

Anjos de poeta não implodem,
esvaem-se da cabeceira
da cama do menino.

Retornam para a dimensão do sonho
que se teve
e se dispersou com a razão.

Ele sente isso. E o que faz?

Retribuo com o poema a vigília
e peço que devolvam a Paulo
o patibulum e a culpa.

O que tem o apóstolo da epístola com isso? Creio que Lacan tem parte na estória. Em 1960, em seu Seminário sobre a Ética da Psicanálise,

retoma textos antigos, como a Epístola aos Romanos, de São Paulo, “tu, que te glorias na lei, desonras a Deus, transgredindo a lei”(…) “porque pelas obras da lei não será justificado nenhum homem diante dele. Porque, pela lei, vem o conhecimento do pecado”.

Aí está, novamente, o pecado, o enigma que faz o poeta se sentir perdido no

gelo intransponível.
Daí esse tatear – essa procura.

Adam Smith disse em A Riqueza das Nações, 1776:

…não é da benevolência do padeiro, açougueiro ou cervejeiro que se pode esperar o jantar, e sim do empenho deles pelo que irão… lucrar.   

Luis Büchner,em O Homem Segundo a Ciência, 1869, sobre o comunismo:

– Todas as tentativas do gênero têm falhado vergonhosamente e afirma-se que, por causa da fraqueza, da insuficiência da natureza humana, falharão sempre.

Insuficiência. Em GLACIAL, de Jorge Elias Neto, há um poema chamado “Insignificância”, em que ele fala:

O céu conspira
dentro de mim,
ponto
sujo no útero
da neve.

Insignificância, é o título do poema. Insuficiência, diz o também médico Büchner. E veja isto, em “O Arco e a Lira”, de Octavio Paz:

– A necessidade de expiar, como a não menos imperiosa da redenção, brotam de uma falta; não no sentido moral da palavra, mas em sua acepção literal: somos pouco ou nada diante do ser que é tudo. Nossa falta não é moral: é insuficiência original. O pecado é ser pouco.

Temos aí, portanto, uma bela correção ao Gênesis, que tem a ver com a “insignificância” de Büchner e Jorge Elias.

Veja, mais uma vez, o começo do mundo, no primeiro poema de GLACIAL:

Compondo o sitio arqueológico

A vastidão
é uma pedra
redonda e fria.
Grande esfera
onde deslizam
e desabam as criaturas.
O horizonte ‒ gelo
intransponível.
Daí esse tatear – essa procura.
A obscura arqueologia de esconder-se.

E, no silêncio,
no cu
desse branco profundo,

aguarda,
e se expande,
e fulgura,
o jardim das epifanias.

Epifania é uma súbita sensação de realização ou compreensão da essência de algo. E com a última estrofe, Jorge Elias cria, de cara, um choque estético. Mas, curiosamente, no poema “Insignificância”, repete a cena com outro palavreado:

O céu conspira
dentro de mim,
ponto
sujo no útero
da neve.

O que faz o Inconsciente! Substitui no cu / desse branco profundo, pelo Self do poeta, ponto / sujo no útero / da neve.

A faca yanagui
despregou da glande
a gota de sêmen.

Resgatou da solidão
o vicio cuspido.

“Solidão”, “Vício”, “faca” – é difícil não pensar em “vício solitário” – masturbação, como também em castração. Mas estamos… dissecando um poeta, e – segundo seu colega Paul Valéry – A meditação é um vício solitário que cava no aborrecimento um buraco negro que a tolice vem preencher.

“Tolice”? Ou… “epifanias”? Ficamos pasmos, sempre, com o inter-relacionamento de tudo que é humano. Voltemos aos poemas: eles falam em “gélidos desfiladeiros ladeando avenidas”, “enormes geleiras que sentenciam à morte os que ignoram a cronologia do desespero”, “cristais, cristais e mais cristais desabam e lancetam a alvura”, um caos, enfim. E aí lemos:

No caos, chupando manga

O poeta se debruça no caos
chupando manga
e a Lei suprema
se mistura

         — indissoluta —
às fimbrias que teimam
em persistir
agarradas
entre os dentes.

Daqui do Nordeste, de onde escrevo esta resenha, saiu a avó de Jorge Elias, a quem ele passava horas ouvindo cantar e recitar cordéis, como ele diz numa entrevista a Hilton Valeriano. Pois bem: “cão chupando manga”, aqui, significa alguém muito especial no que faz. “Ariano Suassuna? É o cão chupando manga!”“No caos, chupando manga”, portanto, é uma volta por cima, num hábil jogo de palavras. Porque se trata do desprezo pela fonte de seu tormento:

e a Lei suprema
se mistura

         — indissoluta —
às fimbrias que teimam
em persistir
agarradas
entre os dentes.

E tudo termina como se houvesse, por fim, um acomodamento. O poeta está produzindo… e basta. Será?

Inércia

(…)

O gelo conservou os corpos.
Os gestos
 ….— consumidos pelo desespero —
permaneceram.

Mas nem Baudelaire, Poe, Augusto dos Anjos… ou Jorge Elias – como todos nós – permanecem o tempo todo “pra baixo”. O que os faz, o que nos faz assim? A vida. C´estlavie. E isto é um belo poema:

Um resto de sol no desalento

Ocupo-me de uma febre
sem propósito.
Modos existem
de forjar os dias,
principiar universos,
rir do descomunal
segredo da vida …

Mas não nessa noite gelada
em que persisto centelha.

Eis a última pele ― a palavra ―
que se desgarra inapta
a prosseguir
afirmando
o esplendor da verdade.

 

W. J. Solha lançou Relato de Prócula em 2009, pela A Girafa, romance escrito com incentivo da Bolsa da Funarte de 2007. Em 2006, obteve o Prêmio Graciliano Ramos por sua História Universal da Angústia, Ed. Bertrand Brasil. Em 2005, o Prêmio João Cabral de Melo Neto pelo poema longo Trigal com Corvos, ed. Palimage, de Portugal. Em 2011, publicou o romance, Arkáditch, pela Ideia Editora, pela qual também lançou seu segundo poema longo, Marco do Mundo, em 2012, a que se seguiu Esse é o Homem, em 2013.

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *