Aperitivo da Palavra II

Uma indelével e tortuosa via chamada memória

Por Fabrício Brandão

 

Capa de A Eternidade da Maçã

 

Existem coisas que deixam nossa mente impregnada de perspectivas. Quando elas nos sugerem imagens e sensações as mais variadas possíveis, é porque algo efetivamente aconteceu dentro de nós a ponto de estimular vontades criativas. Estas tais coisas vão maquinando outras tantas e logo nos percebemos diante de um produto materializado sob a forma de um livro, espaço de projeções, arremates e de livres invenções, sejam elas labirínticas ou não.

Mesmo quando não desejamos, somos acometidos pelo mundo que se anuncia em torno de nós. A partir daí, decidimos se avançamos ou recuamos, mas deixar de perceber as externalidades é graça um tanto improvável de nos ser concedida. Talvez por isso tamanhos conflitos se operem no pulsar desritmado da dimensão mais íntima que guardamos.

A razão para as linhas iniciais deste texto serem assim construídas está diretamente ligada à experiência de leitura proporcionada por “A Eternidade da Maçã” (Ed. 7 Letras), livro de contos do escritor baiano Marcus Vinícius Rodrigues. Nele, irrompe bem vivo um paralelismo de sensações narrativas que demarcam uma válida opção por relacionar aquilo que está fora e dentro dos domínios humanos.

Tendo como fagulhas marcantes de inspiração canções de Caetano Veloso, “A Eternidade da Maçã” apresenta todo um território de ficções contidas num dos períodos mais assombrosos da história do Brasil – a ditadura militar. E possuir como contexto o forte cenário de tensão sugerido pela repressão ditatorial acaba sendo uma espécie de armadilha quando um autor não sabe se livrar dos apelos fáceis do tema. Para a recompensadora constatação do leitor mais atento, Marcus Vinícius foge desses ardis criativos.

O fato é que estamos diante de sete contos marcados por uma menção temporal explícita a histórias compreendidas entre os idos dos anos 60 e 70 do século passado. Ainda assim, isso é apenas um recorte do tempo para situar quem se debruça sobre suas linhas. O destaque maior está em perceber que se trata de narrativas que seguem uma cronologia interna, desvinculada, portanto, de uma sequência ordenada de acontecimentos. Nesse contexto, importa ressaltar o viés notadamente psicológico dos personagens, cujas existências são alvejadas pela ambiência plúmbea dos anos em curso. O tempo psicológico é como um grande personagem central que abraça todos os demais personagens, fazendo-os desfilar suas dores, anseios, hesitações, contradições e desejos contidos.

Marcus Vinícius é hábil em posicionar num mesmo front da consciência de seus personagens tanto as dores de um coletivo (e aqui ressaltemos a mão obscura do regime militar por sobre toda uma sociedade) quanto aquelas individualizadas. Nesse contraponto entre o externo e o interno, as narrativas ganham uma conformação especial na medida em que intercalam cenários difusos de vida. O autor manipula a dinâmica entre passado e presente, utilizando acertadamente recursos de flashback como uma estratégica ferramenta de posicionamento de seus personagens diante da percepção da realidade na qual estão densamente mergulhados.

She has given her soul to the Devil/but the Devil gave his soul to God, canta Caetano numa de suas mais vigorosas composições do período em que amargou seu exílio em paragens londrinas. Esse trecho da música Maria Bethânia, utilizado por Marcus Vinícius como epígrafe de “A Alma do Diabo”, conto que abre o livro, por si só é emblemático e sugere um caminho através do qual o contista segue a seu modo, tornando-nos intrigados observadores. Diante disso, cabe uma pergunta: quais os humanos resultados do encontro, num hospital, entre um doente major e sua enfermeira cujo irmão foi torturado por aquele mesmo militar?

Em “Barco vazio”, as noções de integridade física e moral são postas em xeque ante a extrema necessidade de sobrevivência a qual está submetido seu protagonista. A escolha narrativa aponta que num estado de exceção lógicas tradicionais se invertem a tal ponto que também é permitido ao oprimido utilizar-se dos mesmos expedientes do seu algoz. De modo intermitente, na cabeça do personagem central ecoa a frase: “Às vezes é preciso fazer alguma coisa errada para fazer o que é certo”.

É interessante perceber como o contista foge de lugares comuns, subvertendo expectativas óbvias em alguns de seus personagens. É, por exemplo, o que ocorre em “A flor e a estrela”, trama que tem por curioso arremate a ingênua visão de mundo do seu protagonista, até então alheio a tudo o que representava viver num país subtraído em liberdade. O jovem enamorado que atravessa a cidade sitiada para levar uma rosa a sua amada é a demonstração de como uma suposta alienação política deu margem a algum tempo de delicadeza e poesia.

Mais à frente, no conto “Longe daqui”, subsiste um espaço para o desejo, que em meio a toda sombra circular da traição, encontra algum mínimo abrigo diante da ausência de liberdade plena. O beijo entre amigos do mesmo sexo, parceiros de experiência de vida desde a infância, carrega em si toda uma simbologia, algo que transcende qualquer noção de sexualidade e que se norteia pela consciência de que o corpo é também um receptáculo de gratidão e lealdade.  Estamos diante de uma amizade posta à prova por vias nada usuais.

Aos poucos, vamos percebendo que os personagens são pessoas normais que, mesmo diante dum amplo cenário de repressão, cultivam uma espécie de felicidade clandestina. Esta fugidia, é claro, mas o suficiente para recriar cenários da memória, através dos quais passam vívidos flashes de saudade ou de alguma distante tentativa de reparação. Quando encarcerados ou torturados, os protagonistas das histórias recorrem a lembranças que tanto significam uma válvula de escape para a dor presente como também uma tentativa de vislumbrarem o que seria deles se tudo fosse diferente, ou seja, se suas escolhas fossem outras.

Vencedora do Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia 2016, “A Eternidade da Maçã” é uma obra que prima pela riqueza de suas narrativas. Seu criador lança mão de bem elaborados recursos descritivos, tecendo um painel que agrega o físico e o imaterial. Assim, não entrega respostas prontas ao leitor. É como se as histórias ficassem em suspensão, sem um arremate derradeiro e prontas para continuar sob a dinâmica de outros olhares.

Terminada a leitura do livro, fica a sensação de que Marcus Vinícius Rodrigues não quer que esqueçamos uma das páginas mais cruéis de nossa história. Na medida em que um autor como ele concretiza isso sem nos impor desgastadas formulações ideológicas, o saldo é por demais positivo. Quiçá a luz ideal posta sobre as coisas seja aquela realmente capaz de proteger a memória, e não usurpá-la repetindo frases perdidas ao vento num desatino sem propósito.

Fabrício Brandão edita a Revista Diversos Afins, além de buscar abrigo em livros, discos e filmes.   

 

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