Aperitivo da Palavra II

Fatos extraordinários e cenas do cotidiano na poética de Jorge Elias Neto

Por Shirlene Rohr de Souza

Dimensões
As palavras estão lá,
Com seus olhos atentos
A me observar do silêncio
(Jorge Elias Neto)
Jorge Elias Neto

Jorge Elias Neto / Foto: arquivo pessoal


Entre as vozes da poesia que se erguem neste tempo de tantas novidades e inquietações, este texto trata especificamente da lírica de Jorge Elias Neto, cuja poética se funda em uma linguagem que alterna violência e ternura, ou potência e fragilidade, e que revela, de uma forma ou de outra, uma convicção niilista. O ceticismo do poeta, contudo, não o paralisa frente aos dilemas humanos: a poesia é a sua ação que nasce de combinações de diferentes perspectivas, tais como impressões do seu entorno (“Nada menos humano, menos carnal que o verde”), observações da vida em cena (“A vida não é um jogo de baralho. Não poderei simplesmente dizer “passo”),  personagens (“Vó Bela! / O homem é assim”) e de imagens surreais (“Não me importo / com numerar as penas do cisne”).  Este ensaio trata das temáticas que se destacam na poética de Jorge Elias, cuja linguagem está plasmada em testemunhos do cotidiano e em convicções pessoais. Os temas, na poética de Jorge Elias, podem ser, em uma determinada perspectiva, colocados em duas esferas de interesses e situações: fatos extraordinários e cenas e ocorrências do cotidiano. Os fatos extraordinários, pela sua condição de eventualidade, ocorrem com menos frequência, mas são profundamente marcantes na escrita do poeta.

Os fatos extraordinários

Os fatos extraordinários se elevam acima dos fatos rotineiros. Alguns poemas de Jorge Elias Neto surgem de uma condição ou de acontecimento extraordinário; esses temas podem sair dos noticiários, mas também podem surgir de vivências de eventos marcantes. No primeiro caso, destaque para “Caligrafia do Bruto”, que revela o assombro do poeta com uma notícia de jornal; no segundo caso, destaca-se “Discurso para o cadáver”, marcado pelo evento da morte.

“Caligrafia do Bruto” surge de uma notícia chocante: sob as referências das matrizes greco-latinas e judaico-cristãs, o mundo ocidental ficou assombrado com a notícia de que uma mulher seria apedrejada até a morte, acusada de adultério e de ter conspirado pela morte de seu marido; o assombro provinha das inconsistências da acusação e da truculência do veredito dos juízes.

A jovem senhora comoveu o mundo quando a mídia deu visibilidade à sua história e, graças à estrondosa repercussão do caso, houve uma reação em cadeia mundial em seu favor: vários organismos internacionais emitiram pedidos de clemência, apelando para os Direitos Humanos e pedindo sua absolvição. Por fim, a pena de morte de Sakineh foi revertida em anos de reclusão.  Mas o que, de fato, aconteceu a essa mulher? Qual seu verdadeiro destino? Quantas sakinehs sucumbiram no anonimato sombrio das tradições religiosas, no oriente e no ocidente?

Se o corpo de Sakineh não foi apedrejado – sua pena foi revertida em chibatadas e reclusão – sua alma de mulher foi despedaçada, irreversivelmente ferida e machucada. Essa é a imagem capturada pelo poeta: a lapidação moral de uma mulher. Corrompida e maculada pelas leis dos homens, Sakineh, a mulher proscrita, nunca passou de mais uma das centenas de milhares de histórias que se encontram em mídias e redes sociais, fadadas ao esquecimento. Mas a violência da narrativa tornou-se perene na poesia de Jorge Elias Neto, para quem essa história representa mais uma escrita da barbárie nas letras dos homens, na caligrafia dos brutos. A barbárie não é o contrário da civilização, é apenas sua outra face, sua irmã siamesa.

Em contraposição à brutalidade da história de Sakineh, que circulava nas redes de internet, os versos do poeta também circularam nas redes sociais, constituindo assim uma resistência em rede contra a violência, de uma curiosidade perversa, da mídia: a poesia fez medrar a ternura de alguém que, como uma multidão de outros anônimos, não se conforma com brutalidade que se exerce sobre as pessoas em nome de uma religião, em nome do poder. Ao colocar o poema “Caligrafia do bruto” em circulação, de alguma forma lança luz sobre um problema universal: a condição feminina nas culturas do mundo cristão, islão ou pagão; a condição da mulher no Brasil ou em países da África, da Ásia, de todas as cidades, de todas as vilas, de todo o mundo. As mulheres são vítimas potenciais de uma intolerância social que impõe um jugo pesado sobre sua alma, seu corpo e seu destino. Silenciadas por um código moral violento, às mulheres cabe um lugar de desvantagem nas culturas do oriente e do ocidente.

Ao falar das damas do Século XII, Duby (2013, p. 110) parece se referir à realidade de muitas sociedades contemporâneas: “Existe assim um espaço fechado reservado às mulheres, estritamente controlado pelo poder masculino”. E não se trata de exceções: tacitamente, não se aceita a presença da mulher em posição de comando, e isso ocorre em todas as sociedades, ainda que em algumas as conquistas e o reconhecimento da mulher sejam mais evidentes. A vida pública é reservada a poucas personalidades femininas, pois insidiosamente grupos de forças tradicionais tramam contra a emancipação da mulher, contra seu sucesso e ascensão, sob o entendimento de que o lugar das mulheres é o recato do mundo privado, onde podem ser vigiadas e punidas, se ousarem tentar romper essa barreira. As conquistas femininas, com notável força a partir do Século XX, são evidentes e importantes, mas ainda pequenas, frágeis e restritas. A pena capital é uma realidade no mundo inteiro, seja pelas leis religiosas, seja pelos códigos masculinos: mulheres são humilhadas, violentadas, espancadas e assassinadas a todo instante. A poesia é impotente frente ao drama das mulheres, impotente frente aos males do mundo, mas ela não se cala e não se esconde frente ao que é extraordinariamente humano: a poesia revela os paradoxos e as dores desses tempos. O poema sublima histórias de horror. A poesia é o afeto do poeta.

“Discurso para o cadáver” trata de um dilema da humanidade: a morte. Ainda que a morte seja um fato corriqueiro do cotidiano, afinal todos os dias morrem pessoas, ela torna-se um evento extraordinário na privacidade dos lares, na intimidade de uma família, na organização de um grupo; a morte arranca as pessoas de sua rotina, fazendo-as pensar, cada uma delas, na própria morte. Assim, a morte constitui um fato extraordinário, sobre o qual o poeta tem muitas coisas a dizer.

“Discurso para o cadáver”, pois, é um pequeno monólogo dirigido a um cadáver. E apenas no título Jorge Elias Neto usa a palavra “cadáver” que, por sua natureza semântica ligada à morte, soa como matéria, puro objeto. A escolha dessa palavra reforça o posicionamento do poeta ante a morte: tudo está acabado. Segundo Houaiss, a etimologia da palavra “cadáver” é de origem latina, significando “corpo morto”; mas a intervenção popular vai além e associa “cadáver” a uma expressão latina: CArne DAta VERmem (Carne Dada aos Vermes). Seria a palavra cadáver, assim, uma sigla. A pessoa reduzida à carne. Na cultura popular, outra palavra contempla o significado de “cadáver”: a palavra “corpo”. Essas palavras traduzem com exatidão semântica aquilo que a morte representa: ausência de alma, ausência de espírito. Falta a vida.

Nos versos do poeta: “Do ponto / em que se parte / ― se esquece ― / o espectro / da carne / ― do irremediável”, outra escolha emblemática: “espectro”. Esta palavra, popularmente, é associada a fantasma. Contudo, a existência de fantasmas pressupõe uma continuidade da vida após a morte, em uma dimensão misteriosa e inexplicável. Ora, uma convicção niilista não permite tal interpretação, restando à palavra um sentido semântico muito diferente: “espectro” como “coisa”: “coisa vazia, falsa; ilusão”. A vida é uma ilusão. A morte é o fim da ilusão.

Em alguns versos o poeta reforça seu ceticismo categórico, carregado de lirismo telúrico: “A você, o privilégio / da dimensão / onde se plantam flores”. A terra, o fim de tudo, onde o “cadáver” encontra seu destino final, o sossego da extinção da alma. Ou talvez não: na dimensão da vida, alimentando os vermes, o cadáver inicia um novo ciclo de vida, adubando raízes de flores de todas as cores. Nas palavras de Arendt (2001, p. 57): “É isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico”. Mas, enquanto o corpo está presente, acima da terra, o profundo respeito do poeta pelo cadáver, o qual faz lembrar que a vida é breve: “Teus olhos / não mentem / essa simplicidade / em dizer: / tão breve, a vida, enquanto saturamos / o ar”.

Os fatos extraordinários eventuais – uma notícia, uma morte ou acontecimento marcante – projetam-se em meio aos acontecimentos de rotina; chamam a atenção por algum motivo, por algum aspecto. A eventualidade é uma força esporádica que atrai o poeta, mas é, certamente, do cotidiano que Jorge Elias Neto pinça seus temas: nas cenas e ocorrências do dia-a-dia.

Jorge Elias Neto

Jorge Elias Neto / Foto: arquivo pessoal

Cenas e ocorrências do cotidiano

As cenas e as ocorrências do cotidiano fornecem os temas mais frequentes à poética de Jorge Elias Neto. O cotidiano, como substantivo, corresponde às ações que se realizam todos os dias, continuamente, ações que se repetem todos os dias, na vida de todos os indivíduos. Hannah Arendt (2001, p. 221) lembra que: “O único atributo do mundo que nos permite avaliar sua realidade é o fato de ser comum a todos nós”. Apesar de o mundo social ser comum a todos, pois, em sua rotina diária, todos o compartilham, as percepções são estritamente pessoais: o mesmo acontecimento pode ser aplaudido por uns e rejeitado por outros. Qualquer ruptura da rotina torna-se um fato extraordinário. Assim, todos os dias, as pessoas se movem em um mundo comum, ainda que, pelos seus sentidos particulares, esse mundo seja compreendido singularmente, por cada indivíduo. Hannah Arendt (2001, p. 221) desenvolve essa ideia e infere:

se o senso comum tem posição tão alta na hierarquia das qualidades políticas, é que é o único fator que ajusta à realidade global os nossos cinco sentidos estritamente individuais e os dados rigorosamente particulares que eles registram. Graças ao senso comum, é possível saber que as outras percepções sensoriais mostram a realidade, e não meras irritações de nossos nervos nem sensações de reação de nosso corpo.

 

Pelo cotidiano, o poeta, em sua singularidade, depara-se com ocorrências percebidas por todas as pessoas, mas sentidas singularmente por ele mesmo. Pelo caminho da singularidade, o poeta questiona certezas e verdades: as convicções estão instaladas em um ponto de vista, o qual apresenta uma versão possível, nunca uma versão absoluta. A poesia é sempre um outro ponto de vista possível. No cotidiano, a rotina se constitui de ternura, violência, dor, risos, expectativas e, no cotidiano do poeta, mesclam-se muitos elementos da vida sensível: saudade, lembranças, amor, família, morte, dor, frango com farofa, passeios, olhares perdidos no nada. Tudo isso, cenas e ocorrências do cotidiano, alimenta os temas da poesia de Jorge Elias. Tudo pode ser o início da poesia, como ocorre com “A poesia começa assim”, cujo segundo verso, demonstra que o poeta está mergulhado no cotidiano: “deixando as mãos rendidas aos gestos costumeiros”. Todavia, a palavra é a força capaz de desmembrar ou de desprender alguma ação, algum gesto ou algum objeto da realidade cotidiana, mas contra a qual ele se rebela: “jogar-se nos trilhos / para salvar a flor”.

É também pela expressão poética que Jorge Elias Neto demonstra sua profunda descrença em alguns grandes pilares da civilização, como a religião, há muito tempo tragada pela linguagem científica, pela lógica da economia e pela exatidão dos resultados apresentados por laboratórios renomados. O poema “Agora é tarde, pintei o muro” dá grande mostra do espírito cético do poeta que, em tom lacônico, afirma: “Comer todas as hóstias / na infância – de uma só vez – / só me serviu para matar a fome de Deus”. Contidos e serenos, esses versos confirmam a tese de T. S. Eliot (1989, p. 44): “o que conta não é a “grandeza”, a intensidade das emoções, dos componentes, mas a intensidade do processo artístico, a pressão, por assim dizer, sob a qual ocorre a fusão”. Dessa maneira, o poeta expressa a condição solitária do homem, sem amparo divino.

Adorno e Horkheimer (1985) advertem que a perda do apoio da religião na reconfiguração moral dos homens contemporâneos não levou as sociedades ao caos cultural, mas ao contrário, não há caos, tudo se movimenta em torno de um ordenamento pragmático do mundo: o arrefecimento da fé integrou um conjunto de forças que redirecionaram o mundo para um novo modelo cultural, submetido a uma prática econômica perversa e imperturbável. Para Adorno e Horkheimer (1985, p. 113), esse novo modelo “confere a tudo um ar de semelhança”. Dominadas pela racionalidade calculista e destruidora, as religiões não se prestam mais ao consolo: “O alento da cristandade / não sei se volta”. Todavia, se obsoletas como campo sagrado, elas ressurgem como uma grande feira de milagres. O vínculo entre o homem e as religiões não se rompe, apenas se corrompe: as religiões sucumbiram às leis do mercado.

Ainda como cenas e ocorrências do cotidiano, uma imagem chama a atenção do poeta: uma árvore morta, uma ingazeira. Na pressa, poucas pessoas reparam as árvores vivas ou agonizantes. Só reparam nelas quando são arrancadas por ventos e interrompem a passagem de carros e pessoas. Reparam e reclamam. O cotidiano exige pressa e emite imprecações. Mas o poeta faz uma reverência, afetuosa em “Poema à morte da ingazeira”, que também reforça o traço de visão niilista do poeta no verso “partir para o esquecimento”.

As cenas e as ocorrências do cotidiano constituem traços de uma poética que se consolida forte, coerente e vigorosa. Os versos de Jorge Elias Neto, de uma maneira geral, expressam diferentes sentimentos, de forma alternada: revolta, rebeldia, ternura, saudade, nostalgia, indignação, contemplação. Alguns poemas são notavelmente especulares, tais como “Seu Jorge” e “Nomear poemas”.  O uso do próprio nome indica um mergulho na própria alma, na própria atividade poética que realiza. O primeiro verso do poema “Nomear poemas” torna-se muito revelador e emblemático, considerando o conjunto de uma poética fortemente marcada pelas próprias experiências, lembranças e reminiscências: “No fundo, os poemas chamam-se Jorge”.

À sensibilidade do olhar do poeta para pessoas, objetos, cenas e acontecimentos de seu tempo, agrega-se ainda um importante diálogo com o sistema filosófico. Com uma linguagem intimista, serena, até mesmo melancólica, Jorge Elias Neto dialoga com questões universais, com muitas referências à vida e à morte, à dor e à alegria. A condição humana e os paradoxos da existência estão em sua poesia.

 

A caligrafia do poeta

 

“Os artistas são as antenas da raça”, afirma Pound (1997, p. 71). A afirmação do poeta-crítico-ensaísta é, com toda justiça, repetida em ensaios de crítica literária. Não seria tão frequente se não fosse verdade. A atividade do artista está relacionada a uma faculdade excepcional de ser sensível às ocorrências que a grande massa ignora ou não percebe. O artista se inclina para um detalhe, nuanças de um evento banal, mas indicativo de algo novo. Artista da palavra, o poeta se esgueira para um pequeno vão, de onde se lança com coragem ao mais profundo precipício, para um abismo onde se vê as raízes da humanidade; ou se lança ao voo mais alto, plainando sobre as paisagens gerais. O poeta capta o que é indizível e traduz seus sentidos em versos, revelando ao mundo seus significados. No registro das paixões, Jorge Elias Neto coloca o juízo da poesia no corpo frágil do verso. O poeta tem algo a dizer sobre as metamorfoses da vida e, no labirinto de palavras enigmáticas e enérgicas, sobre sua própria metamorfose: “(só sei transformar sapato em borboleta)”.  Na escrita potente e sensível de Jorge Elias Neto, a caligrafia registra cenas do cotidiano, bem como os fatos extraordinários. Mas não fala o poeta de si mesmo, para si mesmo: fala para outros. Escuta o poeta.

 

 

Referências:

 

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo; posfácio de Celso Lafer. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Trad. De Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
DICIONÁRIO Etimológico. Disponível em: http://www.dicionarioetimologico.com.br/cadaver/. Última consulta em 14.set.2016.
DUBY, Georges. As damas do século XII. Tradução de Paulo Neves e Maria Lúcia Machado. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
ELIOT. T. S. Tradição e Talento Individual. In: _____. Ensaios. Tradução de Ivan Junqueira. São Paulo: ArtEditora, 1989.
ESPECTRO. In: HOUAISS. Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
ELIAS NETO, Jorge. Verdes Versos. Vitória-ES: Flor&Cultura, 2007.
____. Rascunhos do Absurdo. Vitória-ES: Flor&Cultura, 2010.
____. Os Ossos da Baleia. Vitória-ES: Secult, 2013.
____. Glacial. São Paulo: Patuá, 2014.
HOUAISS. Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
POUND, Ezra. ABC da literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1997.

 

Shirlene Rohr de Souza é professora Mestre da Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, Campus de Alto Araguaia. O presente ensaio é vinculado ao Projeto de Pesquisa Poetas Críticos, coordenado pelo Prof. Dr. Isaac de Almeida Ramos (UNEMAT).

 

Clique para imprimir.

1 comentário

  1. Jorge Elias é um dos poetas sobre os quais me detive acuradamente. Marca sua presença em Vitória do Espírito Santo e no Brasil.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *