Dedos de Prosa I

Carla Diacov

 

Foto: Silvio Crisóstomo

 

 

seus corredores

     (para Raul Macedo)

 

faz a cama como quem veste a noiva e não dorme sobre. o pouco que se diria sobre este jovem não se daria à história. é como aconselhar alguém a não respirar mais o ar, dizer que é pura alegoria, luxo demais. estou tocada pelo fogo. há também o fato de que não gosto de dizer o rapaz. ele me chama. quando o digo, ele me chama. mas bem, faz a cama como quem veste a noiva e não dorme sobre. veste-se como aos dias, é um mancebo cotidiano. hospeda-se onde cessa. sempre. é uma preguiça feita. é também essa espécie de hotel de esquina onde raios de sol e partes de luar só entram se convidados. não uma casa, é hotel de esquina, pois que pura cintura. não bebe café nem liga pra conhaque. serve-se de leite morno e não dança bem, não dança bem nem querendo pretender passinhos engraçados. não nos roçamos. aos seis anos tomou uma surra dum buldogue de ladeira e quase perdeu-se do nariz. ele não diz, mas sei que ama a minha voz, pois que falo a ele. falo a ele para ecoar o menino. e minto. o menino não faz a cama. a cama o faz. sua noiva, sua cama. disse que o pouco que se diria sobre este jovem não se daria à história. minto. oh, Deus, minto tanto. neste hotel, as esquinas dos espelhos se dobram, os corredores se cruzam e se perdem tanto, todas as janelas se lamentam e então prosam. este é o nome do menino.

 

 

 

***

 

 

 

seus parágrafos

 

digo que há sempre um leitor. na escuridão. na chuva. no ponto de ônibus, entre tantos que não, por exemplo, na biblioteca poderia não haver. e o leitor é instituto flamejando a cabeça besta e os óculos respingados, boneco vodu recheado de nada para que o livro entre ao leitor, faça-se o leitor. é besta e é servidor e como é bonita a cara do leitor. não ter vergonha, não ter destino, consumida cara por este sal de esperanças desgraçadas. na praça, na fila do açougue, onde houver aglomeração, lá estará o leitor, onde houver espaço, onde houver encaixe, onde não houver, no avião, onde não há, poderia haver. deixa-se respirar e existir pelo manto que o cobre, o leitor é súbito. emprestado à paisagem, divindade caridosa, silente, o leitor. o leitor do quando alguém a pedir informação, o leitor gesticulando sem estar ali, o leitor. escondido e infiel, agora estará lendo um suspense, em casa, ao lado do abajur tenro, o leitor e o gato do leitor, o café esfriando ao lado do leitor e o leitor ao fim do livro, como que num gesto de súplica e horror, aplacado e um tanto decepcionado, enfim volta a ser gente no clique que apaga a luz, derrubando o café já frio, espantando o gato do leitor que não mais, o leitor.

 

 

 

***

 

 

 

seus queijos

     (Para Gabraz Sanna)

 

parte já o trem com jeito de sino. vai já partir.  numa das janelas sem vidro está o homem bom. Gabriel é de viajar sozinho e leva no colo uma sacola com queijos e doces caseiros. fazia tanto, contando em tempo, que Gabriel não via a mãe e esta o fez levar sete dos queijos e três dos potes de doce que é o doce-de-leite,  não o argentino,  diz a mãe, o argentino não presta, esse faço eu, gritava, que gostava de gritar. ao lado de Gabriel senta-se uma senhora já tomada pelo conhaque, fumando feito uma senhora muito fumante e que podia muito bem ter se escavado em outro lugar do vagão quase completamente vazio. Gabriel é este homem bom que não dirá coisa alguma, não se levantará rumando outro assento, não Gabriel, Gabriel não. a senhora roça o homem bom, ela não tem jeito mesmo, é uma joça duma senhora, enfia o dedo na beirada da sacola, espia os queijos, ri como joça muito gargalhosa. e agora estarão passando pelas fazendas e Gabriel fingirá esse interesse absurdo pelas manchas que fazem o rebanho no pasto, pensa em mapas, são mapas, são estados e cidades as manchas que fazem. a senhora o cutuca na bochecha, examina sua camisa de homem bom. o cigarro dela já quase todo consumido e a cinza quase toda aposentando-se no queijo do cimo. Gabriel cutuca um dos parafusos do banco da frente, são globos, planetas, são planetas, lá vivem criaturas que, pensa gritado, que gostava de pensar assim, gritado, criaturas que. a senhora pega a cabeça de Gabriel, desmoronada do cigarro que já não mais, que jaz na sacola sobre o último queijo, junto às cinzas, pega a cabeça do homem bom, toma o rosto dele e por uma eternidade, com a língua e os dentes, com o sexo e a tremedeira duma ressaca bem próxima, estuda um estudo mancado do que é o rosto e o dorso de um homem tão bom. engole e então o cospe, mastiga e então o rumina, Gabriel é a pele seca da mulher vivida, é a vulva e é a suja lentidão. a senhora o embrulha em pura libertinagem molenga e malpassada para depois o ejetar. embrulha e o ejeta. e agora o Gabriel não. o homem bom não estará mais ali. Gabriel, o bom, terá sumido com os entrecortes de sombra e de sol, uma ou duas estações atrás. o Gabriel que fica é tomado pela senhora ladrona depravação, é tomado de luxúria e despreocupação. filho do mal, agora é um homem vermelho e alto que desce ao Rio de Janeiro sem instinto subsidiário. ele não é mais uma filial. a vida se ribomba por ele e tudo é calor e umidade. a senhora, os queijos e o doce seguem viagem. não esse Gabriel. esse não.

mas acabar assim o guloso recomeço de vida de Gabriel, oh, não poderia.
agora ou mato Gabriel ou ele me mata. e assim é.
segue a bandidagem, segue a senhora, seguem os queijos e o doce.
segue o trem com jeito de sino. fica um homem, fica sua pujança, coisa abusada debruçada na ribalta da mácula.

 

 

 

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suas faces

 

cresce o boi, os porcos, cresce a lã, cresce a muié. o céu faz cosquinha nos orvido dos bão de coração. ah, a vida pequeninha do homem de saia rosada. tem dia que limpa o chiqueiro e tem dia que não, que se limpa não chamava chiqueiro, não. tosa Carla, sua única ovelha. pretinha-pretinha é a Carla, a ovelhinha do homem de saia que faz café, faz pão de milho, fez curso de tricô lá na comunidade do Amparo, com a mulherada do Amparo pra tricotar e tricotou: fez três lindos cachecóis pra Carla, friorenta que só, tadinha, estranhando a intimidade com a lã. teve o dia em que o boi, a muié e os porcos do homem de saia fugiram e não voltaram. teve o dia em que Carla quis fugir e não foi, ficou presa no farpado. e é assim: Carla e o homem de saia. a cadeira de balanço com o homem de saia e Carla. e, claro, o céu fazendo cosquinha nos orvido dos bão. os bicho e a muié andarão bebeno e brigano na estrada, cabadibronco. UMA HORA ES AVORTA, CARLA. UMA HORA ES AVORTA. CAUSEDEQUE AVORTA É AVESS DI SAÍ. Carla pensa: ÉÉÉ-É-É-É.

 

 

(sou carla diacov. de qualquer forma. não me importa tanto ser. e também vou e volto e babo durante. nasci (09/04/1975) e moro em São Bernardo do Campo e brinquei na praça-dos-meninos. morei a Londrina e ela a mim. fiz teatro e me desfiz. então escrevo e sei que vou, mas volto. de qualquer forma. e gosto tanto de pão de forma com amendocrem. de qualquer forma, que é como eu sou, mas volto. Babando)

 

 

 

 

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4 Comentários

  1. ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!!
    honra minha!
    honra minha!

  2. Também fiquei babando e tanto e tanto que só me resta falar do encanto de cada prosa poética aqui lida, babada por você, Carla. Dizer mais o que depois do tanto que você já disse. Não há mais. Tudo o que eu disser é menos.
    beijoss

  3. Carla,

    A sua prosa é excelente: conjugação de tempos e modos, crítica e júbilo; crônica-com-verve-haurida-da-imaginação-poética. Por ser esta coisa-em-bloco, só posso dizê-la assim, a coisa.

    Fui claro?

    Um beijo e parabéns!

  4. Apenas marcando presença, um leitor entre tantos, sem grandes profundezas literárias mas, honesto.
    Li ‘seus corredores’, de cabo a rabo, letra por letra. Já estive em contos seus (este é um conto? Uma parte…), bem mais ‘exotéricos’, intrincados, mistérios puros.
    Sim, você tem uma maneira sui generis de escrever. As vezes já me dei bem ao lhe ler, as vezes não.
    Do que li, gostei. Você escreve com arte, pois consigo escreve.

    Abraço.

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