Dedos de Prosa I

 

Foto: Bruno Kepper

 

 O  sonho

Anderson Fonseca

 

Quem serás, esta noite, do outro lado
Da parede do sonho indecifrado?
Jorge Luis Borges

 

Tinha por costume, um ilustre cientista, Dr. Andrea Svevo, visitar-me às tardes de domingo para conversar assuntos que a nós dois suscitavam interesse.  Habitualmente às 14h quando chegava, sentava-se – na poltrona que fica à direita da estante de livros – coçava o bigode, acendia o cigarro, e depois de lançar o fumo no ar, dava inicio ao diálogo que se alongava até o fim da tarde. O hábito de sua visita – exata e assídua – tornou-se para mim um rito… Até o dia em que se atrasou. No começo da noite ele apareceu como uma ave de mau agouro, assim, repentinamente; entrou arrebatado, tirando os sapatos às pressas, procurando com o olhar o assento. Estava agitado; a fala trêmula e com espasmos. Entre balbucios repetia que tinha algo a me contar. Sugeri – indicando a poltrona – que se sentasse, Svevo se sentou, acomodou os ombros largos, ajeitou o bigode, acendeu o cigarro para não faltar com o costume e começou a dizer:

– Dr. João Zveiter, o senhor, como sabe, não sou um homem que se impressione por qualquer ideia, ainda que minhas cogitações em torno do misticismo lhe pareçam surrealistas, imagino que não pense a respeito de mim como um insano. Acredito de boa fé, que apenas respeita minhas opiniões. Estou certo?

– Sim – concordei.

– O senhor deve se lembrar de quando comparei o espelho ao sonho e disse-lhe da possibilidade mágica do sonho se comportar como espelho. Certa vez, você mesmo disse, repetindo as palavras de um poeta, que o espelho e o sonho são um mesmo e único ser nos olhos do homem. Baseado no que me disse, retruquei lhe dizendo o quanto acredito que o sonho possa nos revelar o futuro e você concordara comigo. Mas lembro-me de você ter dito, citando Jung, que também é possível que o sonho nos revele o futuro daquele mesmo sonho, ou nos mostre outro sonho que ainda há de aparecer. Em suas palavras, era possível um sonho antever outro sonho dentro de si mesmo.  – Svevo dizia fitando-me os olhos com a convicção de um luterano. – Pois bem, meu amigo, hoje tive a sensação de tais ideias. Hoje sei o que a certa hora da noite hei de ver, quando meus olhos estiverem cerrados. O que vou lhe contar, deve ser dito de uma forma que não possa esquecer, direi a você o que ainda não me aconteceu, e sei como será sem antes ter sonhado. Certamente, Dr. Zveiter, você irá me perguntar como posso saber o que não me aconteceu, se nem sequer mergulhei no vasto sonho para que este me revele o futuro. Sinceramente, não sei como explicar, somente lhe garanto, com fé, que sei o que há de me acontecer no sonho.

– E como o senhor pode me garantir de ter antevisto o sonho sem antes sequer ter sonhado? Quer que eu aceite que sabe apenas porque você tem certeza do que diz, pela fé? Está por acaso debochando de mim?

– Não! – exclamou Svevo como uma criança questionada pelo pai tentando convencê-lo de que não mente. – Eu sei, é isto.

– Ora, hei de aceitar o que me diz, como hei de ouvir o que há de me contar, mas não porque existe lógica no que afirma, pois na verdade, sabemos ambos que não há nenhuma razão no que está dizendo. Poderia interná-lo num hospício, para que recupere, lá, sua sanidade. Mas acredito que ainda que eu fizesse isso, você continuaria a defender sua ideia. Não tenho outra escolha senão ouvi-lo. Diga-me então com suas palavras previamente escolhidas o que tem a contar. Diga-me o que viu.

– Não o que vi Dr. João Zveiter, mas o que hei de ver.

– Fale logo.

– Esta noite sonharei um sonho inevitável. Sonharei que diante de mim, nesta sala, estará outro eu. Ele estará sentado onde estou. Saberei que ele é eu porque o sonho me dirá e não porque reconhecerei seu rosto (no sonho o rosto é uma sombra). Ele estará diante de mim em silêncio aguardando que eu fale, e eu mostrarei a ele minha angústia e meu desejo. Direi a ele que a alma que carrego comigo é maléfica e que dela quero me livrar. Ele então compadecido estenderá sua mão. Quando a toco sinto parte de minha alma ir para com ele e mal ela se vai já me sinto diferente. Ali, naquele instante, percebo que a outra parte agora a ele pertence. Ali, entendo que ele é o limbo e que ela ficará com ele para sempre. Ao despertar já não sou eu quem desperta, mas outro, porque embora saiba que ainda sou, sou um eu com menos de mim. Não posso lamentar. Aceito que é real; eu estarei com o outro eu, e ele levará uma parte de mim consigo, ele é meu limbo, e o que é eu, ao estar com ele, não mais retornará.

– O senhor usa de uma linguagem poética para descrever o indescritível. Acredita que o uso desta linguagem convencerá a mim de que o que diz é verdade? Não obstante creia que a poesia seja a língua do infinito, não a considero suficiente para tornar lógico o que é irracional; é possível tornar aceitável o fantástico aos olhos de um sábio, não significa, entretanto, que valha como verdade. E o que o convence de que a visão do futuro sonho seja real a ponto de perturbá-lo?

– Zveiter, já conversamos a respeito do sonho ser um espelho, se tal conceito for verdadeiro, nada impede que a alma se fixe no sonho como a imagem no espelho, e, se este espelho for o inconsciente, é claro que a alma se fixará nele sem retornar.

– Ainda assim, não disse o que o perturba.

As horas se passavam sem nos aperceber e Svevo a cada minuto dizia com maior convicção o seu sonho e a cada minuto que a convicção evoluía para o indubitável, sua feição transformava-se; a metamorfose de seu rosto me amedrontava, eu temia por algo pior. Pois embora o sonho fosse apenas devaneio de um filósofo, este mesmo sonho teve o poder de mudar a mente de um homem. Não mais se olhava para Svevo e se podia afirmar ser ele. Diante de mim, outro surgia, mas quem?  Eu não sabia, não sabia, até que ele disse:

– Tenho razões para crer que após o sonho cometerei atos terríveis que me levarão a um fim igualmente terrível. A ausência de minha alma, certamente me tornará em alguém incapaz de distinguir o bem do mal. Eu me vi matando Madelaine e você, Zveiter. Eu matarei para santificar o mundo de um mal invisível, e ainda que esta razão seja insana, e também indesculpável, é a única razão que me há de vir sem que eu a questione. Creio imensamente que ao fazer, o farei sem arrependimento. Apesar de agora considerar um ato terrível o que farei, após o sonho me parecerá natural. Eu serei este outro que desperta. Portanto, esqueça o que você vê neste momento, apenas pense em quem hei de ser. Pense em mim, agora, como aquele que surge depois do despertar.  Estou tomado por esta certeza, e isto, me conturba profundamente.

Andrea Svevo estava transformado. Eu o olhava, mas sabia que já não era ele quem estava diante de mim, como se o sonho desde o seu futuro já influenciasse o presente, como se aquele outro eu, já existisse, ali, diante de mim. A hipótese de que o sonho, que ainda nem se realizara, já o tinha tornado em outro, me seduziu a ponto de crer estar certo de que Svevo não era mais o amigo que conheci. Mas seria ele realmente capaz de assassinar sua esposa e amigo? Seria possível que ele abandonasse parte de sua alma num ser extracorpóreo, cuja existência era improvável, e, sobretudo, existindo no interior dele mesmo tornando-o inverificável cientificamente, e ainda sim, real somente para ele? Fantasia ou realidade me perguntava por que Svevo acreditava tanto neste sonho. Convenci-me de que Svevo não mais existia. Apiedei-me dele e a piedade levou-me a fazer o que era necessário.

Antes de Svevo dizer “A…”, com a agilidade de um jovem, saltei da cadeira encravando em sua garganta a caneta que estava em minha mão. Enquanto a caneta deslizava pela carne indo cada vez mais fundo cortando a veia jugular, rasgando o tecido fibroso, a fenda aumentava seu raio de abertura deixando o cálido sangue escorrer grosso com gotejos pesados sobre o chão; a sensação de que era eu que ali morria, crescia em mim alucinadamente, inquietando-me por dentro, e embora lutasse para afastá-la, sabia ser impossível. Tal como a caneta penetrava a garganta de Svevo, a ideia imergia em meu espírito, até – no mesmo instante em que a caneta afundou-se de vez na garganta – afundar-se de vez em mim. Não havia dúvida, Svevo era meu outro eu e eu o havia assassinado. A cada gota de sangue que escorria crescia a certeza de que tudo era um sonho, e agora, ao despertar, quem levantaria era outro, enquanto eu passaria a eternidade no limbo. Como disse Svevo, aquele sonho… Era inevitável.

 

(Anderson Fonseca é autor dos livros Notas de Pensamentos Incomuns (2011) e Sr. Bergier (2013). Vive em Brejo Santo, Ceará)

 

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