Dedos de Prosa I

Thays Berbe

 

Arte: Marcantonio

A senhoria

Esta tristeza que vem, e senta nos caraminguás da minha sala escura, se acomoda numa poltrona suja e furada, que já tem o formato de seu corpo. Uma visita inumana, inexata, me observa enquanto passo um cafezinho para ela.

– Você vai derramar tudo, diz.  –Pó, água e chororô.

Mania irritante de prever o futuro, penso. Não digo nada. Não levanto a voz. Não peço para ela ir. Aceito sua companhia, como quem se rende a verdade.

Derrubei o pó.

Ela pede pra eu perder a timidez e pular as protocolares etiquetas de uma anfitriã, que disfarça mal a falta de hábito em receber pessoas.

Me diz em tom maternal:

– Esqueça o cafezinho, chora de uma vez criança. Não me venha com chá de cadeira, estou bem acomodada. Transborda as tolices de agora, antes que eu comece a vasculhar suas gavetas.

– O que você ganha com isso? Protelei eu.

-Prazer.

Todas as chaves da casa penduradas em seu colar tilintavam ao menor movimento. Desconfio que minha senhoria adormece e se banha com aquelas correntes em torno do pescoço, que esverdeiam sua pele, que anunciam sua chegada e partida e que eu encaro de viés quando seus olhos não me fitam, querendo roubá-las. Não, não tenho um bom plano.

Quando ela me alugou o espaço onde moro firmamos um contrato,

DAS CONDIÇÕES DO IMÓVEL CORPO:

Cláusula 43: A proprietária terá todas as chaves, com livre acesso. Não precisando de aviso prévio por tempo indeterminado. Sendo essa cláusula não respeitada, a locatária sofrerá punições, previstas na lei natural das coisas, estando sujeita a ordem de despejo.

E, por assim estarem justos e contratados, mandaram extrair o presente instrumento em três (03) vias, para um só efeito, assinando-as, sem testemunhas.

 

***

 

Estômago

 

Francisca,

A pizza era de aliche, a maldita pizza era de aliche. A maçaroca desmantelada no chão, que você provavelmente viu antes de perder a consciência, era uma mistura de molho de tomate, queijo derretido e aquele peixe salobre que bloqueou suas vias respiratórias aos 9 anos de idade, na pindérica festa de casamento da tia Ilde. Papai insistiu pra você experimentar um pedacinho, sem saber que era alérgica. Lembra? Quem poderia supor? Na colisão, Você rolou sobre as folhas ressecadas no asfalto, quebrando uma pluralidade de vértebras. A pizza escapou da caixa de isopor que o Motoboy levava nas costas, derrapou na pista oito metros, saindo da caixa, destampada aos pulos, chegando quente e espatifada junto ao seu corpo.  Nunca mais comi pizza, mana, nunca.  Soube que você estava morta porque seu tórax não mexia mais, seu olho ficou aberto e vazio.  Gigantescas fichas da obviedade colidiram com o meu mundo. “O tórax nunca para de expandir e contrair, nem o piscar dá sossego pro ver, de formas tão sutis, que a vida até parece despretensiosa e evidente”. Até mesmo numa festa aparvalhada de casamento, com babados de plástico e confeitos cor-de-rosa, no salão do prédio da tia Ilde, podemos ser traídos por nossa ingenuidade.

Quando ouvi o estrondo e a vozearia, saí do caixa da padaria correndo, sem pagar pelos cigarros. Te procurei entre os curiosos. Havia um peso na cautela com que todos se moviam.  Existe um momento, quando a morte se anuncia, em que perdemos a noção de espaço e a vida é suspensa em um campo gravitacional por dois segundos, em câmera lenta. Quando cheguei perto, havia um pedaço seu, de dentro, bojudo e mole, derramado. Encarei sua víscera como se eu pudesse colar você, como se fosse um segredo teu mal ventilado. Desmaiei. O motoqueiro, você, a pizza e eu, sentindo nossas vidas vazarem pelo asfalto, enquanto em algum canto da cidade, um motorista de ambulância saía às pressas do banheiro, fechando a braguilha da calça, pra atender o rádio sobre a mesa do cafezinho.

Sabia, mana, que quando a gente morre todos descobrem nossos segredos?  A maioria deles.  Eu também não sabia até você ser atropelada num domingo pelo entregador da Pizzaria Tutti, enquanto seu sorvete de casquinha escorria muito. Depois disso as pessoas interrompem suas contas bancárias, entram no seu quarto, fuçam suas coisas, dividem-nas em três partes; doação, venda, e o que cabe numa caixa de lembranças. Os objetos falam a maioria das coisas sobre você, mas a caixa de remédios, a sujeira embaixo da cama e o computador, falam mais.

Depois do seu velório, era difícil pentear meus cabelos, cacheados como os seus. Era difícil ouvir música, comer queijo, atravessar a rua, expandir o tórax, piscar. Disseram que o sinal já estava fechado pra você, mana, e que o moço tinha pressa. A pressa devora tudo.  As azeitonas que se espalharam na pista enquanto seu corpo arremessado perdia tufos de músculos pelo caminho, eram verdes e graúdas, como seus olhos roliços. Eu tenho a sensação de que uma simples azeitona poderia me asfixiar pra sempre.

Num dia ruim, inventei de contar ao Dário todas aquelas imagens do acidente, que me perseguiam. Contei os detalhes, mana.  Daquela luz alaranjada nos prédios, quando a tarde se recolhe em tom de candeeiro, impingindo fachos luzentes pelas frestas das nuvens e tudo parece fazer parte de um instante inabalável.  O farol de pedestres abriu, eu apertei o passo e entrei no Marajá Pães e Doces pra comprar cigarros e não te deixar esperando, para não nos atrasarmos pro show do Otto. Você se distraiu com algum livro de capa colorida da sessão de R$ 1,00 daquele sebo mofado, e atravessou em seguida com seu vestido azul de algodão. Contei como era a primeira tripa humana que eu vi. Contei qual era o sabor do sorvete. Contei tudo, porque o Dário era o meu marido, e eu precisava de colo. Fui uma testemunha tresloucada dos acontecimentos, precisava enfraquecer o que me perturbava, eu precisava de ajuda.

Ele se pôs a chorar, mana. Primeiro um ruído impreciso caía de sua boca e do seu nariz ao mesmo tempo, seus olhos apavorados foram desistindo de ficarem abertos e se afundaram no rosto a medida que espremia a cara com força. As bochechas subiram formando sulcos na pele da testa ao queixo. A língua se projetou levemente e Dário entregou- se aos soluços, que evoluíram para um violento choro, desesperado e alto. Elevou as mãos enormes e tremulas, e sem saber o que fazer com elas, grudou-as no rosto, abafando o inesperável.

Ficou claro. Causaria menos dor a ele se eu tivesse pegado a faca de pão da mesa e destacado seu jovem coração. Ou, se eu tivesse arrumado as malas e saído de casa com os vinis do Duke Ellington.  Ou quem sabe ainda, se fosse eu a estar distraída, com uma casquinha do Mc Donald´s, meio baunilha, meio chocolate, atravessando a rua Martins Fontes, e sofresse uma colisão de alto impacto com uma pizza de aliche.

Fuçar no seu computador depois dessa bandeira, foi a primeira coisa que eu fui fazer.

Gostaria de saber se todas aquelas trepadas que vocês deram no hotel Delmar da República, eram para superarem essa minha mania de controlar tudo?

Quando acompanhei mamãe naquele ritual patético de atirar suas cinzas ao mar, um contravento soprou flocos seus no meu rosto. Me debati, me senti imunda.

Eu teria te matado. Mesmo te amando tanto.

 

Thays Berbe gosta de florestas. Frutas secas. Texturas e cores. Viagens. Lama. Coisas antigas e coisas que viram outras coisas. Plástico bolha e bolhas de sabão. Falar, cantar e ficar em silêncio. É especialista em comunicação audiovisual pela faculdade Belas Artes e Anhembi Morumbi e desenvolve seu trabalho como roteirista e redatora.

 

 

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2 Comentários

  1. Lindas historias,amei a página.

  2. Gostei! Sutil um e brutalmente doloroso o outro. Muito bom.

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