Dedos de Prosa I

Marcelo Novaes

 

Pintura: Neuza Ladeira

 

O nome da coisa

Vinte e cinco anos compactados numa mesa. Nos cabides, ternos amassados. Dor pré-cordial. O suor, em frente ao espelho, tudo embaça. [Até o ambiente]. Nubla a visão: humano olhando elefante. [Ou elefante olhando o humano]. Temperatura alta. Pouco espaço existencial. Cloreto de sódio e potássio pingam no chão. O chinelo tem pouca aderência. Vertigem é o nome da coisa. São mil e seiscentos quilômetros de volta, até a casa paterna. São vinte e cinco anos de fresta. [Ou falta, até as Bodas]. Suor abunda [& sobra]. Rubor na face. [Encharcada a testa]. Coração em disparada. Antecipação da noite.

 

 

 

***

 

 

 

Garça

Não deixe a imaginação tolher-te, porque é tão triste [ela] e petulante. Olhe a garça de antes. Não há engano. Nada se lhe iguala: sonho desabado em pedra grande, distância medida em mar de areia. Nada. Da fera, sequer vestígio insinuado no quadrante, aroma de flor ou fruto trazidos pelo Vento Norte. Não há litígio. Não deixe que a imaginação elabore o mal, chore saudades em cacos de espelho, memória, pano puído. Lágrima residual. Não há resíduo. Desvista a vossa filha [de tão agudas sílabas] de dentro dos tímpanos. Não deixe a imaginação tolher-te: o sol é límpido demais. Desses de rasgar os olhos. Dói, mas seca o limo. Não acolha a escolha que te tolhe: esse chão úmido por sob os pingos que não cessam.

 

 

 

***

 

 

 

Aos Cães do Futuro

Não, Dylan. Eu não me arrastarei feito cão, atrás de palavras surradas. Nasci erectus, com vocação pra ser vertical, sem prurido ou comichão pelas coisas rasas. Sem render meu fígado a qualquer vício ou má água. Não me arrastarei feito cão atrás dessa pilha de ossos; fadado a ser vertical, nada menos. Sem medo do longe ou do agora, tantas e tais líquidas dimensões: insuspeitas ou supostas. Não me curvarei, Dylan, para a tua Elegia Inacabada, precioso e caro engano [como a última transmissão de rádio, antes da queda do aeroplano]. Mantenho o meu focinho suspenso e teso em prumo autônomo, bem preso ao próprio faro. E te lego [é herança, não brinquedo] a caixa-preta deste coração e cérebro [e que isso não te doa às têmporas, pelo esforço de desmontar e remontar sozinho tamanho e gigante quebra-cabeças], com um único pedido: que se lhe exponha [aos outros cães] só na próxima década.

Em forma de pergunta.

 

 

 

***

 

 

 

Black Dahlia

Vou falar de meu pai, de forma elegíaca, lírica e sinistra. Milimétrica. Aos nove anos, ele era um prodígio na música e ao piano. Tinha um QI alguns pontos acima do QI de Einstein. Não brinco: relato. Meu pai era assim. Mas a genialidade paga um preço. Tendo chegado à Universidade, aos quatorze, meu pai não estava preparado pra ser o menor e o mais fraco. Procurou refúgio nos becos e no álcool. Meu pai passou a gostar de sexo violento, para aliviar seu peso e seu fracasso. Fotógrafo e escritor ignorado, mais tarde foi ser médico. Clínico. Cuidou das doenças venéreas dos ricos. Ouviu seus segredos. Soube dos mais rudes instintos. Perversos. Aumentou seu próprio repertório. Participou de orgias com escritores, atores, atrizes, pintores, meretrizes, dos quais se fez amigo. Elizabeth Short era uma dessas atrizes e putas-de-luxo. Havia muitas, como ainda há. Meu pai conheceu Henry Miller, Man Ray: um pintor-fotógrafo maluco, que lhe mostrou não haver distância entre a vida e o sonho. A pouca ética que meu pai podia ter, perdeu. Jogou-a no lixo, apoiado em tolo silogismo. Meu pai era mau. Minha irmã Tamar já o acusara de abuso, aos quatorze, mas meu pai tinha a quem pagar. Meu pai se safava. Quando encontraram Elizabeth Short, ao meio dissecada, eu sabia das sete mil horas de experiência de meu pai em cirurgia. Vi a semelhança com os quadros de Man Ray, suas fotografias: mulheres desmembradas, e o Minotauro imposto sobreposto insinuado amalgamado ao corpo de mulher, com os braços rendidos, em chifres transfigurados. Meu pai fez sua obra de arte, exibindo o corpo daquela que comeu um dia. Na mesma fria postura. Imorredoura. E eu só o descobri há alguns anos, depois de morto.

 

Sou psicólogo por formação. Já trabalhei em AMEs e UBS nas periferias da zona sul de São Paulo, em ONGs [SOS Aldeias Infantis, CVV], consultório particular. Sei das artes um tanto, do mundo cão sei também um bocado. Escrevi alguma coisa que está espalhada na web [Corsário, Cronópios, Mallarmargens, Casa dos Poetas –Portugal -, dentre outros] e em alguns blogs. Publiquei o romance Cidade de Atys pela Ateliê Editorial, em 1998. Por escolha e ideologia [discordância com as regras do mercado editorial, fundamentalmente], só escrevo na net, agora. Assumo a escrita como ofício sem fins lucrativos.

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3 Comentários

  1. Estonteante

  2. Amigo,

    Parabéns por sua sensibilidade. Obrigada pelo carinho e por compartilhar sua arte.
    Abraço

  3. Marcelo Novaes, para além de perspicaz, é um ente sensível e audaz. Sua escrita, personalíssima, nos envolve como pétalas e por vezes nos revela caminhos espinhosos – porque tudo nele é.
    Parabéns amigo. Abraço

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