Dedos de Prosa I

Helena Terra

 

Ilustração Rebeca Prado

 

A mecânica do trucidamento

 

A cadência do tempo corrói e aumenta a dor de uma criatura mesmo quando a esvazia. E não adianta o coração bater mais forte, o sangue se derramar, o comprimido mergulhar em um organismo. Quanto mais lenta, mais forte ela se torna. É o processo. É a mecânica. O trucidamento é sua matriz. O útero que a expulsa em milhões de pedaços, em partículas de angústia e de verdades sem amor. E quando tudo isso acontece, quando alguém é escolhido, não há cor que permaneça e não há vida que não exploda em coágulos. E foi, por isso, que no momento em que eles se encontraram no quarto, ele veio correndo até ela com os olhos fixos em um corpo invisível, obcecado pelo reflexo da ausência. E ela, indiferente, não disse nada. Atravessou o espaço, guardando os frascos do sentimento espancado, surda aos movimentos do afeto. Ele parou, surpreso. A mão roçando a cabeça, prevendo as inflexões de uma ruína. Quer tomar um banho? Ela sentou-se na cama. Não tive culpa por essa demora. Só agora liberaram o leito, minha querida. Onde está minha mala?, ela o interrompeu, vasculhando, com os olhos, o ambiente. As paredes se aproximando, perdendo largura, caindo profundas. Irradiando o calor opaco. Transformando os seus restos de fêmea em um concentrado disforme. E ele, ao lado, contínuo, homem ambivalente dos bastidores, estático em sua permanência secundária, incapaz de romper a cena de inércia e desalento. Onde está a minha mala, ela voltou a perguntar, dessa vez, mais alto. Não está vendo o sangue escorrendo por essa roupa horrível? O vermelho revelado na altura do ventre e das coxas. A solidão revelada nas manchas, em seu papel de mãe túmulo, mulher sepultura encarregada de abrir a própria carne e desenterrar, espasmo por espasmo, célula por célula, o filho. Também sinto muito, ele disse, também sinto muito, e, então, encolhendo-se, bombeou uma lágrima e mais outra e mais outra até ela, exausta, deixar-se levar, repousando o sofrimento sobre a água multiplicada, e desdobrando, finalmente, o seu colo destroçado sobre o do marido.

 

Helena Terra nasceu em Vacaria. Mora em Porto Alegre. Já colaborou em sites, revistas e jornais literários. Publicou, em 2013, o romance A condição indestrutível de ter sido, pela editora Dublinense. É jornalista e ilustradora.

Clique para imprimir.

1 comentário

  1. Muito bom o seu texto, Helena Terra. Dá uma baita aflição, como mulher e mãe, mas é super bem escrito . Parabéns!!!!

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *