Dedos de Prosa I

Marina Ruivo

 

Tomás Casares

Foto: Tomás Casares

 

No carrossel

 

Quer saber? Eu quero mesmo é um tigre pra me comer. Valente, potente, crescente, varando a noite da cidade com seu brilho de tigreperigoso, feroz e desabrido, mas também mavioso.

Cheguei a vê-lo sábado, no parque, pela manhã. Coincidentemente, ou nem tanto assim, nos encontramos lá, eu e o tigre. Abobalhados que ficamos, mal conversamos. Não pude decifrar com as sutilezas necessárias os seus rugidos e balbucios. Acho até fui grossa. Raiva de ele ter dado pra trás, recuado, desistido.

Por isso agora quero outro, outro tigre, mais valente, mais feroz, mais impetuoso. Mais estrondoso e mais doce. De pelo estonteante, pra me lanhar o rosto e os calcanhares. Caninos fortes, incisivos, pra me deixar marcada da posse.

De papel? Sim, pode ser um tigre de papel, não há restrições quanto a isso. O fundamental é que desempenhe bem seu papel. E que faça surgir flores e bichos onde (aqui dentro) só há ausência. Podem ser bichos peçonhentos, venenosos pra valer, não importa. Mas que sejam bichos vivos, esvoaçantes, com movimentos leves e rápidos, intrépidos. É isso que eu quero.

Um tigre que plante em mim a vida que não tenho mais. Que faça a seiva do sonho me preencher de energia nova, e que eu abandone de vez o melodioso chamado da sacada doce, a rua profunda lá embaixo me acenando, oferecida.

Um tigre que não seja um tigre de verdade. Seja só o desejo do tigre, o enigma do tigre, a imagem do tigre. Signo oco mas fecundo, pleno. Carregado por dois ou até três homens mascarados, atores, que o façam se movimentar pelas ruas e avenidas. Eu quero é isso mesmo. Atores. Que finjam com emoção pungente e suficiente para me envolver, me enlaçar, me aprisionar e assim quem sabe me libertar do feitiço do tigre primeiro, menino do parque, com sua juba que mais parece de leão e que cravou fundo em mim suas garras, rasgando-me o peito, deflorando-me a carne, deformando meus olhos, inchados e atordoados do espanto de tanto chorar.

Tigre ator, ainda por cima. Por isso quero outro. Não igual, mas mais avassalador, mais ator, e que não me leve para os abismos e penhascos da alma dolorida nem da natureza ressequida, e sim projete em mim o brilho luminoso dos painéis e dos carrosséis meninos, onde eu possa sentar nos cavalinhos e girar sob o olhar de sua proteção. E vez em quando um elefante branco…

Tigre ator, ordeiro, atroz. Desestabilizador das certezas que a angústia obsessiva da parede de pedra procurava evitar fossem vistas. O sintoma: toctoctoc. Mas com você não há toc, só que também não há mais toque. Eu quis te beijar, falei: Posso? E você: Ai, parece uma criança pedindo posso, mas não, não pode não. Por quê? Não quero mais, somos amigos a partir de agora, nada mais, mas eu gosto de você, tigresa, gosto sim. Não me chame assim que é vulgar. Ué, você não gosta da música do velho moço baiano? Gosto, mas ele estava apaixonado por ela, e aqui, se pode haver um paralelo, é o inverso.

Quero, quero sim, um tigre de bocarra. Nada de doçura, nem fragilidade. Quero a posse literalmente animal, que não quer saber de mais nada a não ser do desejo dos corpos, desejo das almas-bocas que se procuram e se querem unidas, sem saber do amanhã, mas inteiras no hoje da natureza como ela é.

Cíclica.

E por isso, meu tigre, fique em paz que amanhã tudo recomeça, ou depois de amanhã. E você virá, eu irei, e nós iremos. E vez em quando um elefante branco…

 

***

 

 

Comilança

A Marcelino Freire, que me fez olhar melhor para o título do livro de Francine Prose
(Para ler como um escritor), o que acabou originando esta brincadeira, e
a Francine Prose, autora desta obra deliciosa.

Para ler, como um escritor. Ou uma escritora.

Às vezes dois ou três ao mesmo tempo. Mas um de cada vez costuma ser mais saborido saboroso gostoso demais.

De lambedela em lambedela, me lambujo, cravo os dentes. Mordo pedaço por pedaço, degluto, engulo ele inteiro. Pasto e repasto.

Pelos, cabelos, axilas, umbigo e cotovelos. Mas também pés, costas, nuca, espáduas, olhos e nádegas. Nariz, coxas, batata da perna, canela.

Neurônios em movimento, remastigo cada uma de suas sinapses sentimentos, adentro suave sua mente e nela me faço hóspede por algumas horas, dias, anos. Às vezes, quando a comilança é boa pra valer, por uma vida inteira.

Contamino-me por ele, deixo que me coma também, de dentro pra fora e de fora pra dentro, como quiser, que essa inundação fertiliza minhas águas, que rebentam abençoadas, venturosas, integradas e sempre mais esperançosas de haver guardado em meu útero-flor uma sementinha, pequena que seja, dos olhos do escritor. De sua mirada para o mundo e para as palavras, seu namoro com o mundo que se faz pelas palavras, estas suas palavras que são o seu meu nosso mundo.

E saio satisfeita, plena, devassa, dormida, encontrada, recriada, desfigurada, para o próximo banquete amor.

Marina Ruivo é doutora em Letras pela USP, professora da Unimonte (Santos/SP) e colaboradora freelancer de várias editoras. Escreve ficção desde a adolescência, mas por muitos anos tentou se convencer de que deveria ficar somente no terreno da crítica. Como o desejo da escrita não morria, resolveu voltar à prática e vem participando de diversas oficinas de criação literária. Seu conto “Riozinho” fará parte do número 6 da Revista Sexus. É mãe do Pedro, um menino de 5 anos que ainda não sabe ler, mas é amante de histórias e livros.

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2 Comentários

  1. Muito bom! Com uma “pegada” bem feminina e poética os dois se completam.

  2. Uma leitura nobre, de profundo sentir, de grande abertura da alma.

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