Dedos de Prosa I

Lucia Fonseca

 

Cristina Arruda

Arte: Cristina Arruda

 

Manhã

 

Naquela madrugada de encantamento e lenda, naquela madrugada atravessada de sombras e presságios, Rosa acordou antes de todos. Abriu os olhos ainda nas trevas absolutas do primeiro galo e, só depois de escancará-los no escuro e permanecer um instante com o coração aterrado e os ouvidos à espreita, é que escutou, muito longe, o lamento da primeira sereia. Talvez porque, ao longo dos meses que antecederam o prodígio, ela tivesse se habituado a aguçar os olhos e ouvidos e perscrutar o coração em busca de vozes e sinais. Porque, desde os primeiros tremores da natureza, foi sempre ela a única a perceber que eram avisos:

“Começou aqui em casa. Pus o leite para ferver, lembro muito bem, não tinha dormido quase aquela noite, as janelas estremecendo, sacudidas por um vento ruim, e me distraí varrendo o quarto. Quando voltei para a cozinha, corri direto ao fogão, vi da porta que o leite já ia derramando, o balão estufado e branco transbordando da panela. Mas logo percebi que não derramava, alvo que nem camélia, a pele cada vez mais fina e esticada, em vez de branco era assim quase transparente, por pouco não se desprendia em direção ao forro. E quando, num susto, arredei a leiteira da chapa, ele afundou tão depressa, as pétalas de magnólia murcha mergulharam, macias, e uma gota grande respingou no seio esquerdo, é essa marca de queimadura e aviso que tenho até hoje. Em cima do coração.

Nessa mesma semana, começaram a aparecer as formigas. Nas primeiras horas eram poucas, achei uma na minha cama, outras em cima da mesa, rondando o açucareiro. Logo eram fileiras engrossando, jorravam de todas as frestas da casa, centenas de milhares de formigas mansas. Também começou aqui, mas em seguida espalharam-se pelo povoado. Apareciam nos jardins e quintais, não tocavam em nada, em planta nem bicho, algumas subiam num voo cego e tonto, voo pesado de bicho da terra, sem vocação de asa, já reparou que formiga voa diferente de pássaro e borboleta? Morcego também, parece que ele guarda no ouvido o guincho do tempo em que foi rato. Por isso voa espantado. No terceiro dia, a doença da terra se alastrou ainda mais. E cada fresta, cada fenda, cada buraco, por toda a vila, regurgitava golfadas negras de formigas. Até que não houve pedaço de chão ou parede que não estivesse coberto delas. Tentaram veneno, tentaram querosene e fogo, só serviu para matar os ratos e cachorros da vizinhança, as formigas aumentando sempre. E então resolvemos esperar.

A terra passou sete dias vomitando insetos e, então, na tardinha do último dia, fui ao quintal procurar uma abóbora e elas tinham desaparecido. E pelas mesmas fendas e frestas começou a soprar o Terral insistente que crestou o capim, levantou rodamoinhos de pó na estrada, chamuscou as árvores e deixou o mar transformado numa chapa de aço polido onde se refletia, duro, o branco das nuvens mormacentas. A lagoa, ao contrário, encrespou-se toda verde, e subia dela o bafio de enxofre do lodo revolvido.”

Quando começou a rondar o sudoeste, cheirando a tempestade salobra, Rosa correu ao quintal. E enquanto recolhia a roupa, olhou para os lados do mar. O vento soprava agora do fundo dos seus abismos gelados, levantava as ondas em verde e branco, espumando. Só no horizonte, uma faixa clara ainda iluminava uns restos de dia. Para cima, os rolos de nuvens que vinham empurrando o vento e rebocando a noite já se espalhavam numa frente que escurecia o céu. Nesse momento estalou o raio, Rosa persignou-se, chamou Santa Bárbara e sentiu no ombro direito a primeira gota de chuva. Soprou outra rajada de vento e ela ouviu ao longe a algazarra dos homens recolhendo as redes e fugindo para casa. E o último grito de pássaro rasgou os ares.

Choveu seis meses. E o mar fervilhou de peixes. Os homens não se aventuravam a sair de barco com medo de perder o rumo no meio dos aguaceiros e cortinas de névoa, ou estilhaçar os cascos de encontro às ondas de vidro. Mas iam todos os dias à beira da praia buscar as corvinas e tainhas que a maré deixava pulando na areia. Quando a coleta era pequena, andavam até a restinga e, debaixo da chuva, jogavam as redes e recolhiam à flor das águas os cardumes que entravam barra adentro.

Durante cento e oitenta dias os peixes desfilaram numa procissão serena. A lagoa chegou a ficar tão cheia que cheirava a peixe, e os meninos esbarravam nos lombos frios quando iam se banhar debaixo do temporal. Do canal, transbordavam vez por outra para as ruas e, num dia de enchente, desfilaram como num aquário em frente às vidraças das casas mais baixas. Nos meses seguintes era comum acharem-se conchas, estrelas do mar, restos de sargaços e medusas nos canteiros da praça. E um polvo foi encontrado nadando dentro da cisterna do armazém.

Choveu seis meses e todas as casas mofaram. Não houve teto, parede ou chão que não amanhecesse com desenhos de borboletas e pássaros infiltrados, castelos de bolores esverdeados, teias de filamentos lívidos, serpentes e dragões de óxidos alaranjados que avançavam mordendo os canos. Nas primeiras semanas, as mulheres se esforçaram numa guerra sem quartel, varrendo, esfregando, polindo. Mas no fim do segundo ou terceiro mês, perceberam que não adiantava lutar contra aquela flora que ameaçava invadir-lhes também os ossos e convenceram-se de que já era uma boa fortuna manterem os cabelos livres de algas, a pele lisa e os dedos enxutos. E em cada cozinha ardia um candeeiro durante todo o dia, à volta do qual costuravam e preparavam o alimento, e cuja luz orientava a volta de seus homens.

Na última noite do sexto mês de trevas, Rosa acordou com um silêncio pavoroso alastrado nos ouvidos. Acostumada ao ruído constante das águas caindo, fossem os tamborins da chuva miúda, ou os surdos tambores da chuva grossa, fosse a peneira do chuvisco ou o rolar do temporal, aquele silêncio de faca penetrava-lhe os ouvidos, abria um clarão assombrado, ofuscava como luz cegando um olho habituado à penumbra. Em seguida ouviu longe, como um navio distante, o lamento da primeira sereia. Pedro dormia ao lado, e ela empurrou as cobertas com cuidado e calçou os chinelos. Fora, o ar estava fresco e leve, levantou os olhos devagar, e devagar girou a cabeça e olhou para cima. E nunca vira tantas estrelas juntas, tantas, tantas, a Via Láctea inteira, caminho de leite no céu. Estrelas riscavam o horizonte e caíam no mar, acendendo espumas frias.

– Acorda, Pedro, olha, vem ver o céu, vem, escuta o chamado das buzinas, pode ser um navio perdido, vamos à praia, anda, as outras casas estão se acendendo, olha, todo mundo nas ruas… – Rosa, parou de chover?  O que foi? – Tanta estrela, o chão está fresco e cheio de frutas, dá a mão, vamos, não precisa se vestir, olha a Deolinda de camisola, põe uma toalha nos ombros, vem Pedro, vamos pra ponta do farol olhar o mar.

E quando chegaram, já os botos vinham em bandos, gritando e pulando, e atirando-se, cegos, na praia, em busca dos homens. Não havia naufrágio no horizonte, mas as sirenes chamavam, e todo o povoado se reuniu no promontório. E Padre Salustiano benzia as águas agradecendo a provação passada, “…e não faltou peixe para estes homens, e a chuva passou e agora Deus nos mandou de novo um céu cheio de estrelas…”

Mas não se ouvia a voz do Padre, as sereias cantavam mais alto, os botos espadanavam água e espuma e as estrelas caíam em chuveiro. E quando um menino com olhos de sonâmbulo quis se atirar no mar, foi Rosa quem segurou. Logo fez-se um cordão dos homens mais fortes. E, sem que o Padre mandasse, ela se benzeu e caiu de joelhos, depois o menino, e uma a uma as mulheres e crianças, e depois os homens, todos se benzeram e ajoelharam-se rezando.

Não se sabe quantas horas ficaram assim imantados, entre o sortilégio dos ouvidos e o murmúrio das rezas, o fascínio dos botos e o cuidado de conter os encantados. Mas a força de todos segurou cada um. E os que olharam para o alto viram: um Anjo se despenhou do céu, muito branco e leve, cisne e homem de alvas asas, todo plumas. O Padre falou que foi invenção, cuidado com o sacrilégio, mas nós vimos, os botos já se aquietavam e regressavam em fila para o fundo; e as estrelas se apagavam num céu lívido de espanto. O Anjo se despenhou do alto e as águas se tingiram de vermelho. E as sirenes se calaram todas de uma vez.

 

E então era o Sol no horizonte.

 

Lucia Fonseca nasceu no Rio de Janeiro, em 1940. Começou a escrever regularmente no início da década de 70, publicando poemas em suplementos literários de alguns jornais.Dentre outros livros, são de sua autoria:“Invenções do silêncio”, pela Livraria José Olympio Editora, “Rede fluvial”, ainda pela José Olympio,“Cadernos de geografia”(Editora Mitavaí), “Confissões de penumbra” (Ed. Rosa dos Tempos/Record), “Cantares”e “O paraíso era antes” (estes dois últimos pela Editora da Palavra). Mantém o site Vestígios.

 

 

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1 comentário

  1. Extremamente bem escrito, o texto de Lucia Fonseca, nos deixa apavorados desde o começo, com as malditas formigas, e vai num crescendo até o final, que é quando, enfim, descansamos. Parabéns!!!!!

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