Dedos de Prosa I

Vivian Pizzinga

 

Valéria Simões

Foto: Valéria Simões

 

Teoria e prática

 

  1. Tese

 

Ele queria que eu fosse outra. Ele queria a outra de mim. Que eu fosse diferente daquilo que pediu de mim, daquilo que viu em mim, daquilo que julgou gostar em mim. Ele queria que eu fosse diferente do começo, que o começo fosse descartado, ele insinuava que o meu começo não valia mais. Ele dizia que, nesse começo sem valor, havia julgado que gostava daquilo que me definia como eu mesma, havia julgado que sabia exatamente o que é que ele gostava quando sentia gostar de mim. Ele queria que fizéssemos um inventário de nós mesmos, que no autoanalisássemos de forma pura e simples e convertêssemos as dobras, os espinhos, os calos e as inflamações em suavidade morna. Ele queria que eu não fosse o que eu sabia ser, o que eu queria ser, e que o erro havia sido meu, não dele, ao julgar que o que eu sabia ser era outra coisa. Ele me pedia uma impossibilidade e era incapaz de entender que o impossível se constrói aos poucos como possível, muito aos poucos, medidas de longo prazo. Ele não me ouvia, e o diálogo ia ficando cada vez mais confuso, a conversa rodava em círculos, o quê? Como? Explica melhor, eu pedia, evitando olhar para o desespero. Você errou, ele me disse, seriamente, fitando meus olhos empapados de lágrima, aqueles olhos que eu evitava piscar para não enlamear um diálogo tão enxuto.

 

  1. Antítese

 

Ela queria que eu a quisesse a mesma, que eu não esperasse nada, que eu me contentasse com a tranquilidade de dias eternos, que me fixasse em um começo imutável, ela queria que fôssemos felizes para sempre e queria, com isso, uma aliança, um noivado, um compromisso e a longevidade da felicidade que não derrapa. Ela queria uma estrada sem declives, sem aclives, sem curvas fechadas e com acostamento. Não era capaz de entender o que eu dizia, mesmo que eu me tornasse didático e me desdobrasse em exemplos. Ela queria que eu fosse o mesmo, ela exigia que eu não mudasse, pois, mudando, mudaria as esperas, as reivindicações, as palpitações. Ela queria que eu quisesse o mesmo que quis no primeiro dia, e o que quis no primeiro dia era o que ela era no primeiro dia e o que eu era no primeiro dia. Contudo, eu já não era mais o que eu havia sido no primeiro dia, eu era outro. E o primeiro dia, era isso o que eu tentava esclarecer a ela, é sempre diferente de todos os outros. Eu me queria outro, e a queria outra, e tencionava um desvio na estrada, um atalho ou uma volta maior, só saberíamos depois, mas era preciso uma guinada, eu tentava elucidar esse problema e a encarava em seus olhos marejados, sem poder evitar dizer que eu precisava, eu nos queria antônimos.

 

  1. Síntese

 

Nós nos queríamos diferentes do que éramos. Do que havíamos sido e do que almejávamos ser. Ele me queria outra e eu o queria o mesmo. Ele não podia ser o mesmo, eu não podia ser outra. Ele arfava ao me explicar, eu chorava ao ouvi-lo. Ele então tirou minha blusa e me deitou na cama, devagar, alisando meus cabelos. Passei minha mão pelo seu ombro, desci pelo seu braço, acariciei sua barriga. Nos olhamos atentamente, como se descobrindo uma paisagem que havia sido ocultada por um nevoeiro antigo. Ele elogiou a maciez do meu cabelo e espalhou sua mão pelo resto do meu corpo, tirou minha saia. Eu elogiei a firmeza de seu tronco, de seus braços e desabotoei sua calça jeans. Te quero diferente, escutei-o sussurrar em meu ouvido, e dali sua língua enrodilhou o meu pescoço em um colar delgado de saliva úmida. Expirei com força, tentando interromper uma vaga qualquer que se agigantava dentro de mim e que meu corpo não seria capaz de dar conta. Te quero igual a todas as vezes em que te vi, respondi imediatamente, sentindo seu corpo nu avançar sobre o meu. E quando ele disse que não haveria como ficarmos juntos enquanto esperássemos coisas tão díspares um do outro, senti-o inteiro, em certa aspereza edulcorada e de um jeito que eu antes não conhecia, e ele respondeu com um gemido, um longo gemido, o ar quente expelido das narinas, demonstrando que nada precisava ser modificado.

Vivian Pizzinga é psicanalista e escritora. Lançou dois livros de contos (A primavera entra pelos pés, 2015; Dias roucos e vontades absurdas, 2013), ambos pela Editora Oito e Meio. Participou de antologias de contos (Clube da Leitura vols. I, II, III, Para Copacabana, Com Amor) e publicou textos ficcionais e de prosa poética no Jornal Plástico Bolha, na Revista Pesquisa FAPESP, na Revista Café Espacial, entre outros. Escreve críticas teatrais e outras resenhas para o site Ambrosia e contos para o Jornal Algo a Dizer. No momento, prepara-se para o doutorado em Saúde Coletiva e finaliza um romance.

 

 

 

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2 Comentários

  1. Tudo tão lindo!

  2. Gostei muitíssimo dos textos. Originais e super bem bolados.
    Parabéns
    Maria Lindgren

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