Dedos de Prosa I

Dheyne de Souza

 

Arte: Juca Oliveira

 

dos semáforos

 

hoje eu disse que, se sensibilidade fosse pólvora e texto (e não digo qualquer texto, digo daquele que. sabe) fosse fogo, eu explodia. que hoje estou minúsculo e daqui, sabe, as coisas são. obviamente, sim. maiores. eu sei. às vezes fico perdido sem você, ana. sem. caio. hoje eu queria escrever um romance de uma personagem que nasceu esses dias no semáforo. foi quando ela nós ali ante o vermelho que às vezes acho que é o espírito do trânsito tomando aquele fôlego para uma jornada abrupta rumo ao sucesso ao shopping ao dentista ao café ao terapeuta ao sexo a noite amanhã um dia. e ela havia nela um vinco bem no centro da sua testa que era onde o sol se punha naquele fim de tarde. o céu depunha ali nódoas e eu pude, veja, colher muitas cruas nacas de desejos entre, bem entre, assim como se abaixo dos lábios pequenos um pouco à esquerda do caos e eu vi do negro o avesso. que, e também me impressionei, era escuro. mas o que quis dizer dessas montanhas de areias vincadas ali naquele pedaço de face que via do meu vidro fumê a película que a abraçava vinha da sua mão escorrendo como quem não esperasse o verde a ação o futuro em sua parte que é breve. e essa mão de manchas feito a nuvem quando nada no mar. ela puxava assim tão gratuitamente uma mecha do seu cabelo que nem era leve talvez sedoso quando recém-lavado mas ela. ela emaranhada naquele fio suado que me contava do dia da fila do espaço do riso quando criança naquele balanço. eu quase ofereci um cigarro mas eu tive um medo tão grande de romper a sua Verdade. eu tive um medo tão grande de roubar dela e de mim aquela sobra do dia que vinha enquanto uma rima um verso branco mas tão rosa. feito a fresta do sol que dormia na sua testa. feito o vento que arrumava a cama enquanto o seu cotovelo ali despejado na porta do carro, suspeitando do meu olho feito cinema, decerto, tentava me esconder. ou me falar da lama que pousa nos sapatos. ou me contar da trama que sustenta o passo. ou me livrar do assalto que se tem quando. a vida da gente bate no. sinal aberto.

 

 

 

***

 

 

 

às vezes me preocupo tanto com minha memória, sabe, Acaso. é um duto hieroglifado. assim como se as paredes houvessem flâmulas a cada guelra. é uma espécie de nado, Nada, isso de transmutar o tempo, veia memória condão. a cada agora um apocalipse a cada desinência pretérita um epitáfio. e o olho que segue no túnel que era, veja bem, Tudo, era uma era. era uma escada sem step by step. que esse discurso fode-me, se me permite ser um pouco daquilo que vende mais. ouça, Todo, miragem pó e instante é tudo feito de achos. cachos. pedaços. dê-me uma pence de som, Silêncio. dê-me um soneto de escória, Mudez. dê-me uma toalha que não acho a vida líquida porra nenhuma é o meu olho que memora.

 

 

 

***

 

 

 

Um osso do verso

 

O cheiro que acorda a manhã tem raízes ocres.
E se se esquece a palheta?
E se se perde o horário?
E se tragando no tráfego no rádio no atropelamento na lembrança na resposta se se des-cobre o olfato? Digo, praquilo que é da Verdade, o não dito.
Que às vezes aquilo vem feito deus feito orvalho feito o rouco do locutor que erra o erre feito a cor dos pares. A dor dos semblantes. Mas isso tudo é muito pequeno, veja: já não se vê como toca. Como tolhe. Come-se. Sem olhar os dentes. Sem orar os crentes. Sim, senhora. Às vezes, deveras, vê-se sorrateiramente, quando a vida em estado comercial, de esguelha. Vezes se se cura com o sinal, vezes não. Que há o atropelo de som e de líquido e de insípido que é o. Isso. De ver que seja insípido. A sorte é que há sempre outros semáforos, há passos, há laços lassos. Do que se faz alimentar esses ó(s)culos. Pra ver melhor o não.

 

 

 

***

 

 

 

sem título

 

ah a vida e esse cheiro que vela
como um cavalo no escuro no pesadelo da espora
como uma grama que acorda molhada pra ser pisada
como um refém que habita o esconderijo da porta
como uma escolta. paulatina. versando que a vida há

 

Dheyne de Souza é poeta, está em Goiânia-GO, vê o fantasma do verbo bêbado. Tem um canal de leitura de poemas prosas prosemas no YouTube: Pequenos Mundos

 

 

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