Dedos de Prosa I

Vanessa Maranha

 

sinisiaconiin

Foto: Sinisia Coni

 

Natal agreste

 

Acuado, o calango magro e comprido rebolou em ligeireza de pavor, riscando o chão de terra batida: hora ruim para errar ali. Fez-se dele caça, o mínimo peru, a porção de carne para aquela noite de Natal.

A guarnição, um punhadinho de vagens de feijão verde debulhadas vagarosamente pelas pequenas mãos de Ednaldo, Ednei e Edmilson – a mãe Lindalva os pusera à cata de véspera, e pedia cuidado para que nenhum grão se perdesse, a bacia de lata como bateia de pequeninas riquezas. Um naco de rapadura seca escondida num vão da taipa, pepita de ouro que adoçaria o desfecho.

Pai não havia, ou, antes, houvera, sem nome nem registro, Lindalva nem saberia dizer. Apenas que eram seus filhos, saídos de si, um tanto barrigudinhos e empoeirados pelas faltas tantas.

Para cada um dos meninos, embrulhadas em chita florida com o requinte do laçarote, duas bolinhas de gude verde-azuladas, gotas de vidro, simulacros de chuva no calorão trincado, desidratada a vida.

Na mesinha solenemente posta, a lamparina de querosene, um círio natalino; o calango magicamente dourado e trinchado para que se lhe borrasse a forma original, sobre cama de farofa branca. Os feijões verdes boiando cozidos numa água rara, muito caprichosamente chegados ao ponto de alguma dignidade – o dia todo vigiara a Lindalva o fogo pouco para que a ceia maturasse em perfeição.

No arremate, a rapadura, picada em cubos, nenhuma lasca de desperdício, de modo a render dois pedaços a cada um – abria mão da sua porção para oferecer os haveres aos filhos em número par, duas bolinhas de presente, dois pedaços de doce, recurso que era um refrigério imaginário, ilusão de abastança, um despiste à miséria, que alguma ilusão nos salva um pouco.

Pôs os meninos a ajudar depois na limpeza dos pratos de ágata lacerada, permitiu-lhes o jogo de gude, bolinhas que à luz da lamparina brilhavam como água abençoada, quicando e lavando a existência seca, até a exaustão lhe espreitar. Então chamou os seus três meninos às redes de dormir, alimentados, não fartos, mas pacificados, numa noite feliz.

 

 

 

***

 

 

 

Marina

Marina, porque é bonito, coisa de mar, a minha mãe me contou, justificando alguma coisa. Eu, substantiva e adjetiva demais. Eu um aposto, enfim. O meu tom é elegíaco.  Paixão me define, muito mais que beleza.  Só fiquei bonita aos vinte e seis anos, quando meus olhos enfim serenaram e adquiriram a expressão de muita coisa vista, quando o rosto perdeu o redondo infantil e rosado mantendo, entretanto, a inocência necessária. Eu mímica e atriz, porque não tinha um outro modo.

Cheguei ao mundo com o susto de quem veio de lugar nenhum carregando coisa alguma, o mesmo espanto de quem vê milhões de instrumentos ao seu redor e sequer sabe dar um passo adiante de si. Com aquele rancor de quem aparece e vê as coisas prontas sem que tivesse tido ao menos a chance de poder escolher participar ou não da feitura delas.

Eu era aquilo que chamam uma existência toda arredondada em si. Uma circunferência em que não havia cantos, não havia desvãos, inexistiam as angulosidades. Eu só era. Só havia. Só estava. Posta no mundo. Chegada à vida aterradora, que acabou me lapidando logo umas farpas e uns nichos dos bem sulcados; daqueles que não sedimentam nunca (tentei uns cimentos inúteis), mas agora eu os quero assim_ valas abertas, abismos sem fim, infernos abissais, por onde sobrevoam moscas de um esverdeado fosforescente para que eu não me esqueça do que está aberto e do que se esvai. Até agora, eu sou tudo isso_ ou enfim, nada disso.

Hoje o espetáculo. Ouço o burburinho dos primeiros espectadores tomando os seus assentos no teatro. Será que vou conseguir? Será que vou conseguir?_ sempre a pergunta rutilante. Ainda há tempo. Olho-me refletida no espelho. Há areia e pedras ancestrais, beleza, há vivência, uma aptidão para o prazer, há capacidade de ternura, há choro nesse rosto.

As lâmpadas emoldurando o espelho do meu camarim ainda não me desnudam e penso, quase ríspida:  o que quer que eu pareça ser, ainda não me tornei ou já deixei de ser. Não me defina nem ilumine, que eu quero sombra para ter contorno.

Vou maquiando lentamente minha face, que deverá parecer alegre em meus desdobramentos todos_ voz de arlequim, o nó na garganta da islâmica, o horror de uma górgona, a sabedoria das encantadoras, fertilidade de deusa minóica, feiúra de Medusa, o riso desdentado de uma andina miserável, leveza de ninfa, a gordura cumulativa de uma alemã calvinista. Catacúmena, casta, divina também eu sou. Dalí, Artaud e Tzara em mil cores na minha cama, _ na cabeceira dela_mimetizando-me em imposturas deliciosas.

Mora em mim a mulher de todas as mulheres, aquela que viveu em todas as outras anteriores a mim. Tenho útero para conceber, tenho seios para amamentar, tenho coração para sentir e uma armadura de aço na aura_ eu também empunho uma espada. E é no próprio seio da minha natureza que caio, quando, de tempos em tempos fico grávida de amores, de ideias, de esperança, porque o que se desfaz será refeito sempre.

Estou impregnada dessa mulher que há milhões de anos me persegue antes mesmo de ter tido a grande coragem de descer das árvores. Sou ainda aquela macaca robusta de tetas caídas que protege a cria entre os braços compridos, ainda aquela que se tiver fome mata os filhotes, aquela que teme e não explica os trovões, minha espinha dorsal ainda carrega uma curva que me aproxima mais do chão que do céu_minha porção primata não me permite grandes voos porque dela trago o medo, estou carimbada pela dor da minha espécie e gênero.

Afundo minhas mandíbulas num pedaço de carne qualquer e sou eu, há milhares de anos, a antropófaga, a hierática egípcia, sou a celta das adivinhações nos lagos, indiana deusa Kali com o encanto de uma flor no Saara, a bruxa perseguida, a fada incendiária, sou qualquer uma, uma Maria ou uma Joana, a ferina gueixa de lábios vermelhos, Xica da Silva em terra de zumbis, sou rainha chinesa sugando um narguillé porque quer vida, Sherazade nos jardins de Alá, sou babilônica prostituta caminhando por Sodoma e Gomorra, óbvia Eva que inevitavelmente abocanha a maçã, santíssima Nossa Senhora, sou assassina Lucrécia Borgia, concubina de Mefisto, domesticada Amélia, matrona italiana, uma troiana, sou a nordestina ressequida com os olhos úmidos da africana mãe que vive em mim. Substância de todas elas. Sou nácar de uma concha do mar feita de restos de estrelas: uma poeirinha cósmica, um quase nada.

Guardo os meus tótens e ritos, invoco aos deuses proteção nos ciclos em que a lua cheia me agita por dentro em caudalosas hemorragias. Nos dias de cio, loba de dentes afiados ardendo de desejo, os instintos derramados espargem mel. Sempre soube que a vida não me trataria bem gratuitamente, por isso aprendi a sorrir quando me atravessavam um punhal nas costas, por essa mesma razão aprendi a decodificar a mensagem de um olhar e a lançar o meu próprio olhar de intenções. A mulher de todas as mulheres me ensinou o feminino sedutoramente macio e próximo, às vezes, fatal. Sei que dessa mulher que mora em mim, suas fraquezas, suas pobrezas, seus pavores, suas forças, suas limitações me acompanharão, para que a minha célula da mulher de todas as mulheres, continue viva em todas as outras que me sucederão nos próximos milhões de anos_ será essa a minha ressurreição.

Giro pelo camarim à espera da centelha, aquilo que de repente me arrebata e puxa pelos cabelos_ um querer ser, um miraculoso tornar-me.

Na penteadeira, as cento e uma marcas de batons, os trinta e três frascos de tonalizantes epidérmicos, a cola para os cílios postiços, os incontáveis vidrinhos de óleo balsâmico para tensões musculares, os vinte e cinco tons de sombras para os olhos, os dois potinhos de purpurina, as quatorze perucas e as duas zibelinas que me constroem na mais imponderável criatura que houver dentro de mim.

Recebo um buquê de magnólias, uma edição amarelada de Gogol e Tchecov reunidos, um bilhetinho de amor, a proposta para um espetáculo Nô, um (ora!) ovo de avestruz embrulhado em celofane azul.

Olho-me mais fundo e começo a esfregar o rosto e lentamente vou me desfazendo ao retirar a maquiagem. Flagro a desconhecida na pele morena, nas linhas, diretrizes que o tempo deu de presente ao meu rosto, as quais, curiosa, vou seguindo e examinando uma a uma na esperança de saber aonde darão. O espelho me ostentando e ultrajando, simultaneamente, ali imóvel, os círios todos ofuscantes do lado de fora, a ribalta à minha espera enquanto me transmuto em outro personagem_ aquele que sempre mas nunca fui. Olho a majestática lagarta que há na crisálida, minhas olheiras dramáticas, minha cabeleira castanha delineando a cabeça.  Nesse assassínio, deviscerando minhas personas, matando-as uma a uma, as máscaras vão se crestando e despedaçando em plena pele, sinto a dor de um parto, dando-me a mim própria à luz.

Não conheço mais o íngreme caminho que terei de percorrer para subir ao tablado. E num clarão, num repente, vejo que não quero ser entendida (entendimento é silêncio dos menos profícuos, amordaçamento que impede a extensão, reticência infrutífera), não quero tampouco o favor de ser compreendida (quem compreende está intimamente contrafeito e quem é compreendido, fadado à compaixão); quero ser sentida. Quero ser respirada. Ah, a divina graça de ser sentida através do que tenho de mais real: a exalação de mim. E através das minhas maiores sutilezas: toda a suave e expressiva dança de um olhar que se prolonga na visão de algo e encomprida-se mais longe e vago, num tentáculo, na captação da coisa vista para dentro de mim.  Sinta esse movimento. E depois a respiração; vai daí a paixão. O contínuo do que se guarda e do que se expulsa.  Paixão é efervescência e viver, um total estremecimento_ finalmente o destino de almas perdidas que ruminaram formas, mastigaram livros, sentiram tanto, inventaram sons, estremeceram músicas, que nunca beberam paz.

Nesse momento sou apenas sangue, ganas e retórica e, toda rosto, como subirei ao palco? Assim? Desnuda? Personas, eu ainda vos imploro! Mas sei que já é tarde demais. Manca, de um só fôlego, numa súbita coragem, piso o tablado. E antes que algo me exclua da ideia de um passo adiante, eu me lanço, tornada absoluta interioridade visível em carne viva sobre o picadeiro.  Os olhares assustados que me recebem_ quase ninguém está realmente preparado para o tapa na cara que é a nudez de um rosto_ insinuam o absurdo da água marinha de que sou feita em terra. Uma voz longínqua dentro de mim sopra que algo se quebrou na suave remissão de uma rosa despedaçada.

Era a minha última e tão primeira vez. Palcos eu ainda pisaria. Outros.

 

Vanessa Maranha participou de diversas antologias de contos, entre elas “+30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira” (Record). Venceu concursos de contos como os da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), em Minas Gerais, o Prêmio Off Flip de Literatura (2012), o Prêmio UFES de Literatura (Universidade Federal do Espírito Santo) com o livro “Quando não somos mais” (EDUFES, 2014) e também o Prêmio Barueri de Literatura com o volume de contos “Oitocentos e sete dias” (Multifoco, 2012). Foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2015 pelo romance “contagem regressiva”.

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1 comentário

  1. `Ótimos poemas. O segundo, então nos marca todas as Marias que trago comigo ou queria e não consegui. Parabéns!
    Maria Lindgren

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