Dedos de Prosa I

Tom Correia

 

Helena Barbagelata

Arte: Helena Barbagelata

 

Benguela

 

Quando se está preso a um futuro morto perde-se o senso
É impossível anotar com exatidão a passagem do tempo:
Os séculos que conduzem ao exílio sem salvação
Ao desterro compulsório que aniquila
Se há um despertar dos escombros
Não se pode mais compensar as milhões de horas escoadas
Os milhares de dias melancólicos
Febre por respirar coisa morta
Comida arremessada do céu sobre um tronco que navega
Intestinos que se esvaem
Lamentos da costa cada vez mais distante,
Peças desencaixadas para sempre da pangeia original
Corrente subterrânea que faz oscilar
Vidas-dejeto sepultadas em naus fantasmas
Fome e sede amontoadas
Corpos em pus despejados no oceano
Travessia malsã, coleção de moléstias sob ouro e marfim
Tumba flutuante que vomita almas lucrativas
Em portos hostis

A família estrangeira se reunia festivamente etílica ao redor da mesa posta. Havia comida para alimentar um exército, mas em vez de iguaria da terra deles ofereciam algo típico da cidade que os acolhera. Comemoravam o aniversário da matriarca, jovial e de sotaque carregado. Ela não parava de falar sobre os costumes e vantagens do seu país. Os convidados, informais, fingiam interesse. Não se cansavam de elogiar a comida, alguns repetindo pratos vigorosos. Para manter as panelas sempre cheias, a anfitriã sumia por alguns minutos e logo depois retornava carregando porções fumegantes em utensílios inox.

Eu conhecia bem o local da festa, a casa ampla e avarandada que trazia em si uma preciosidade: um quintal com árvore e sombra. Quando o patrão me disse o roteiro no dia anterior, quase me denuncio, porém mantive a frieza profissional. Passei a noite em claro, lendo no meu quarto, e imaginei dar uma desculpa por motivo de saúde. Porém, faltar ao trabalho daquela forma teria sido indigno. Quando chegamos, confirmei o meu eterno estado de invisibilidade em certos ambientes, especialmente quando estou de uniforme. Sentei a um canto para observar os atores principais. Efusivas, as pessoas andavam de um lado para o outro segurando pratinho e copinho cheios. Talheres caíam no piso produzindo o som metálico que trinca os dentes e arrepia o braço. Também havia cerveja barata e cachaça artesanal. A primeira circulava sem limites; a outra, servida a conta-gotas. Os filhos da aniversariante mantinham distância. Comiam pouco e não bebiam. As breves conversas não envolviam histórias engraçadas de infância. O relógio era consultado a intervalos cada vez mais curtos.

“Mas onde a senhora aprendeu a fazer tão bem nossa comida?”, alguém perguntou a certa altura. “Ah, filho meu, isto é segredo”, disse sorrindo. “E depois de tanto tempo aqui a senhora ainda sente saudades da sua terra?”, outro perguntou. “Sinto… É tanta falta que às vezes penso que voy a morrer sufocada. Só vim pra cá porque não tive outra saída, me arrastaron sem me perguntar nada. Quando me desperté estava enfiada dentro de uma lata velha que quase afunda”, respondeu, enquanto se dirigia saltitante em direção à cozinha. Devido ao álcool, todos riram. Menos eu.

*  *  *

Eu não era dono do meu tempo. Tinha de esperar quando quisessem ir. Sentei no sofá pra ver um pouco de tevê. A comida pesada me fez cochilar, mesmo com a gritaria histérica. Sonho: eu e Debrê tomávamos cravinho num boteco próximo ao Parafuso, na Conceição. A gente bebia e jogava dominó, enquanto ele explicava a mudança de ramo, que arte não tinha futuro e seus quadros estavam todos encalhados. Resolveu abrir uma agência de cordeiros e uma construtora de camarotes para o Entrudo. Ele bebia várias doses e permanecia sóbrio, enquanto eu tinha a visão cada vez mais embaçada. Eu perdia todas as partidas sem conseguir dar nem mesmo um passe. Também, pudera. Ele pintava as pedras. No meio do jogo, Debrê atendeu a uma ligação do sócio. “Era o Rugendas, tá vindo pra cá”, disse ao desligar o aparelho. “Não vai demorar”, ele levantou-se e anunciou eufórico, “pra esta cidade ser tomada por hordas de imbecis dispostos a pagar fortunas pra pular atrás de qualquer geringonça bem barulhenta. É um filão que precisamos explorar logo, entende, meu nobre?! A flutuação cambial no mercado de idiotas e espertos está favorável e temos de aproveitar. Hoje, um tolo vale cinco virtuosos, porém você não faz ideia de onde isso vai parar, meu bom rapaz!” Quando ele piscou para mim, levantando outra dose de cravinho com a mão esquerda, acordei.

As pessoas falavam cada vez mais alto. Alguns assistiam a um jogo sem importância, um desses esportes de praia inventados pelos departamentos de marketing dos bancos estatais. Ouvi barulho de copo quebrado em algum lugar vago da residência e fui procurar o meu banheiro. Passei pela fila de mulheres contorcendo as pernas e cheguei ao quintal vazio pra regar rapidamente a árvore, uma das minhas mais remotas lembranças infantis. Notei o mesmo casebre atrás de um muro de plantas, a fumaça branca saindo por uma chaminé de metal no teto da construção. O cheiro não podia ser confundido, não por mim. Antes mesmo de saber onde seria o tal almoço, uma coincidência desconcertante, eu já ensaiava uma visita.

Fui me aproximando e empurrei a porta entreaberta. Ela estava de cócoras, soprando as brasas de um fogão feito de tijolos e pedaços de pau. Eu conhecia bem a fonte da comilança na casa-grande: um centenário panelão de barro coberto de fuligem que eu lavava todo sábado. Uma tarefa detestável. Quando me viu, levantou-se, limpando a mão no vestido roto. Parecia esperar eu pedir algo. Estava descalça e sua pele azul de tão retinta exibia pequenos pontos de suor estático. Cabelos desgrenhados como palhas de aço, massa disforme e espessa repuxada a fórceps. O fundo branco dos grandes olhos contrastava com o sorriso feito só de gengivas roxas. Ficamos assim, um procurando no outro mudança e permanência. Ela tocou meu rosto e ia falar alguma coisa, mas percebeu uma movimentação. “Eita, que lá evém minha patroa…”, estalou a língua e apressou-se em voltar a mexer na panela. Tive de ser rápido pra achar um vão que me mantivesse oculto. Uma encheu os vasilhames e saiu; a outra respirou fundo e se sentou no chão de terra batida, recostando-se à parede. Perguntei se ela precisava de alguma coisa, mas a mulher permaneceu alheia, de cabeça baixa, dividida entre lavar os pratos numa bacia e manter o fogo aceso. Várias vezes pensei em levá-la comigo. Teria sido um grande erro. Além disso, ela queria ficar só. Eu também.

Quando retornei, o pessoal acompanhava a música aos berros. Dei uma olhada no banheiro imundo. Eu sabia quem limparia tudo mais tarde. Evitei colaborar com a sujeira. A anfitriã estava meio anestesiada, devia ser o cansaço. Assistia a tudo com um rosto oleoso, incapaz de esboçar reprovação. Improvisaram um bloco carnavalesco no meio da sala, subindo nos estofados e rindo de tudo, até um deles chegar com a má notícia: a bebida terminara. Sob protesto, foram se recompondo, chaves de carros sendo recolhidas uma a uma. Também tive de sair, porém não podia deixar meu patrão ali naquele estado alcoólico. Fui obrigado a carregá-lo, ajeitando seu corpanzil no banco de trás. Tirei seus sapatos e meias, guardei sua carteira de cédulas e óculos no porta-luvas.

No dia seguinte, ainda trazia comigo as imagens do encontro. Caminhando pelo Vale de Nazaré, vi uma aglomeração ao redor de um caixote de papelão. As pessoas apostavam para descobrir sob qual das três tampinhas um sujeito escondia uma bola de plástico. Nervosos, homens e mulheres exibiam as cédulas que desejavam multiplicar facilmente. Tentei identificar golpistas e vítimas, mas todos eram iguais em suas ambições e trapaças. Recordei o sonho com Debrê. Existem infinitos meios de explorar o mercado de idiotas nos tempos de hoje. Eu tinha vergonha de pegar minha parte do lucro. Quase todos os anos vividos nos subterrâneos de um quarto minúsculo só foram dissipados com uma carteira de motorista, alforria conseguida a muito custo, só eu sei.

Nada mais era importante. A não ser o fato de eu sentir um aperto no peito toda vez que eu via o nome daquela negra na parte de trás do meu RG. Somente o nome dela, carregando nas costas cansadas o branco da outra linha vazia nos meus dados de filiação.

Tom Correia nasceu em Salvador. Jornalista, iniciou a carreira literária em 2002, quando ganhou o Prêmio Braskem com Memorial dos medíocres. Publicou Sob um céu de gris profundo (2011) e participou das coletâneas As baianas (2012) e 82: Uma copa, quinze histórias (2013). Integrou ainda a antologia Wir sind bereit (2013), a convite da editora alemã Lettrétage. Em 2014, foi selecionado para o segundo volume de Autores baianos: um panorama, publicação em quatro idiomas promovida pela Secretaria da Cultura e pela Fundação Cultural do Estado da Bahia. Em 2015, lançou Ladeiras, vielas & farrapos e ganhou um prêmio de residência artística para escritores no Instituto Sacatar, Itaparica. A residência proporcionou seu retorno à Fotografia.

 

 

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