Dedos de Prosa I

Héber Sales

Suzana Latini

Foto: Suzana Latini

 

ACIDENTE ECOLÓGICO

Pesquisadores investigam por que, poucos anos depois da introdução do Like na sociosfera, a Conversa e o Entendimento entraram para a lista de espécies ameaçadas de extinção.

Muito preocupados, alguns cientistas recomendam que, nas zonas mais infestadas por Likes, as pessoas coloquem seus smartphones em modo avião. O procedimento costuma manter esses animais afastados um do outro, evitando assim que copulem e se proliferem ao longo do chamado circuito sedutor das redes sociais, área onde reside hoje pouco mais de metade de toda a população brasileira.

Nas regiões em que esse método já foi testado, Conversas de 20 minutos, até então praticamente extintas no local, começaram a ser vistas com frequência novamente. Pelo menos meia dúzia de pessoas declararam ter interagido com elas no jardim ou no quintal da própria casa.

Os especialistas responsáveis pelo projeto estão bastante otimistas com esses resultados iniciais e vivem a expectativa de encontrar a qualquer instante Conversas de 1, 2 e até 3 horas de duração. Com um de pouco sorte, afirmam ser possível achar inclusive algum Entendimento entre elas. O planeta agradece.

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FORMAS DE RESISTIR

Ocupamo-nos todos demais e fazemos ruído demais, procurando um modo de escapar ao inquérito do silêncio. Há tantas questões… Respondê-las não cabe em uma só vida, e nós não temos tempo, é preciso viver. Alguns ainda se calam e se trancam em monastérios, cumprindo os seus rituais sem uma palavra sequer, e mesmo assim não estão alertas o bastante: a liturgia, afinal, exige toda a sua atenção. Compreensível, é realmente duro aceitar tudo como o silêncio nos pede, sem desviar o olhar de nada – as coisas incertas nos parecem más e a certeza do mal nos faz crer que o bem existe.

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O ANACORETA

Foi no parque da cidade, o sol entre névoas dormente ainda, no instante seguinte ao coro da alvorada, quando tudo aquieta e sonda, de si para si, a glória e o terror de um novo dia, o velho professor, ali, na hora em que, por demente ou asceta, sempre se ausentava do cotidiano, resolvera: queria continuar com a manhã.

Esperou o amém de um louva-a-deus para sorte e fez a imaginação correr com um riacho – concebera dar leito às suas visagens, que pudessem se por, uma após da outra, de volta ao sonho, e narrar desde quando renasciam, multiformes e afoitas.

O córrego porém, vadiando em peraltices e folguedos, fez do venerável repetente e barroco: labirinto, de cuja libertação precisou rogar a uma formiga, pelo atentar à sua trilha, para logo a descobrir tão alheia ao enredo quanto ele: a saúva, à paisana, gozava um feriado.

Só lhe restasse então aventurar o devaneio no voo de um pássaro, de modo a lhe dar destino.

Não demorou muito, um sabiá apareceu na boca da mata sobre um galho de marianeira. Eis a sua melhor oportunidade, pronto pensou, pois, além de lhes fazer sentido, a ave colocaria ainda um canto em suas palavras. Determinou-se. Fixou os olhos no pássaro, segurou o meu braço com força e, levando aos lábios o indicador em riste, arrastou-me para dentro do seu silêncio. Era uma questão de vida ou morte, pude sentir, arremeter com o caraxué.

Setembro, com tudo, conspirava contra nós: a temporada havia posto em cada ramo uma farta porção de bagas, e o sabiá, alheio ao velho mestre, já não tinha mais o que buscar no restante do ensolarado – o anacoreta precisaria de uma outra ave, de uma espécie tão estrangeira quanto a dele.

Foi afrouxando os dedos, devagarinho e derrotado, mas sem soltar de todo o meu pulso, pois não se havia seguro vagando sozinho no ermo que o acometia. Logo adiante, à nossa esquerda, observou uma vasta campina de flores desaparecidas; deixou perambular nela o olhar perdido: alguns canários colhiam sementes na gramínea madura; refastelavam-se também noivinhas e cardeais…

Nem nenhuma dessas aves, com tanto, emigrava!

“Elas ao nada se destinam, eu ao nada me destino, e nem você vai mais ao nada além do nada me destinar, em parágrafo algum”, falou finalmente, quase de áspero.

 

Héber Sales escreve. Natural de Pernambuco, reside atualmente em São Paulo, onde coordena o Grupo de Pesquisa em Semiótica Aplicada do UNASP (Centro Universitário Adventista) e atua como professor e publicitário. Seus poemas, ensaios, prosas e entrevistas têm sido publicados em periódicos como Germina, Cronópios, Mallamargens, Digestivo Cultural e aqui, no Diversos Afins. Alguns dos seus textos também podem ser encontrados no blog coisas para fazer com palavras. Tráfico de Drogas, seu primeiro livro de poesia, será lançado em breve.

 

 

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