Dedos de Prosa I

Márcia Denser

 

LUMA FLORES

Arte: Luma Flôres

 

Os autógrafos de Paul Anka

(Das DesMemórias – capítulo 12)

 

Jamais imaginei que fosse contar este episódio, era um dos meus segredos mais secretos e bem guardados, a sete palmos no último cofre da vergonha: foi precisamente assim que a garotinha de 11 anos se sentiu a vida inteira em relação à coisa toda. Não foi legal. Na verdade, foi horrível. Hoje, por exemplo, ainda é difícil contar essa história com alguma dignidade. Porque antes teve o episódio dos gibis – não sei bem por que estou associando esses dois eventos – talvez por implicarem em mentiras deliberadas.

Melhor falar antes dos gibis: eu tinha oito anos e era uma devoradora selvagem de gibis – Pato Donald, Tio Patinhas, Pateta, Mickey, Luluzinha, Superman, Fantasma (era fissurada no Fantasma!), e como já expliquei também era filhadaputamente discriminada pelas colegas do colégio de freiras, minha vida era uma merda. Por mal dos pecados, Isaura se enturmara com a mãe delas e agora vivia marcando cabelereiros, dentistas, chás, compras na Clipper direto com as novas amigas.

Que traziam junto as filhinhas cretinas – as mesmas que me maltratavam na escola. E minha mãe: o que é isso, filha, que implicância! (eu simplesmente queria matá-la!) Significando doses extras de desaforos sub-reptícios que eu não precisaria engolir, não em casa, não à paisana, não mesmo: Yarinha, Julinha, Clarinha perto das mães era uns anjos: vamos, Marcinha, lá fora pular corda.

Sei.

Lá fora, me gelavam, fingiam que eu não existia, me davam as costas, deixavam de lado, no toco, de castigo da vida, sempre a mesma merda. Quando não insultavam a troco de nada: tenho-te nojo, garota, diziam: olha só a cara dela, parece débil mental, ha,ha,ha! Filhas da puta, eu trancava o choro, cerrava os dentes e os punhos, vermelha feito um pimentão: simplesmente queria matá-las!

Teréca não, essa se enturmava, porém com as pequenas – aí meio que não valia, tinha graça brincar com as nanicas? Humilhação em dose dupla (quando se é criança, dois anos e meio fazem uma tremenda diferença).

Certa vez, na casa de Dona Yolanda, mãe de Yarinha e Clarinha, duas das mais cretinas, esta me vendo jururu num canto, me levou até o sótão lotado de gibis: mergulhei feliz no meio deles. A tarde ia avançada quando percebi que não conseguiria ler todos, de forma que enfiei um monte sob o vestido, abotoando o casaco. Já anoitecia quando mamãe e a dona da casa vieram me buscar: íamos embora. Levantei, me ajeitando.

Você ainda está lendo? perguntaram, percebi que mamãe e D. Yolanda se entreolhavam, constrangidas: pode levar quantos quiser, meu bem, vejo que gosta de ler, disse esta. Encabulada (poxa, se soubesse que ia ganhar, não teria enfiado na roupa, ainda pensei), respondi que não, obrigada, Yolanda insistia: mas leve quantos quiser, encabulei mais ainda: não, não precisa, obrigado!

De repente, com um puxão, mamãe me arrastou até o banheiro e arrancou-me os gibis: e agora vá devolver e pedir desculpas já, tremendo vexame você me fez passar! Afinal, devia estar IMENSA com aquele volume sob o casaco, mas não percebera: auto-imagem aos oito anos? Bobagem.

Mas esta é uma história de rejeição: se estivesse na rua, brincando de pegador, não precisaria enfiar gibis na calcinha. A outra trata dos autógrafos de Paul Anka.

Três anos depois – eu já era quase uma mocinha – as coisas tinham melhorado um pouco para o meu lado no ginásio, eu fizera a primeira cirurgia plástica que corrigira o lábio, simetrizara o nariz. Já a cicatriz, esta enraizara na alma. E aí não havia plástica nem cirurgia que resolvesse: o mal estava feito.

Experimentava minha primeira paixonite pra valer: o cantor e compositor de rock balada de origem sírio-libanesa, o canadense Paul Anka – da mesma safra de Neil Sedaka e do rei Elvis Presley. Tinha todos os seus long-plays, sabia sua biografia, acompanhava a coluna do Louis Serrano na revista Cinelândia onde este relatava as peripécias do meu ídolo em Hollywood, seu namoro com a starlet Annette Funicello, aliás eu andava furiosa com o Louis: este previa que Anka seria um astro passageiro, não ia ficar.

(De fato, atualmente no Brasil ninguém mais se lembra de Paul Anka, eu mesma precisei entrar no Google pra conferir sua trajetória: por exemplo, no próximo sábado, 30 de janeiro de 2016, descubro pelo viagogo, que ele estará em Barcelona no Gran Teatre del Liceu, apresentando-se a seguir na Polônia, República Checa e Eslováquia, um  circuito bem of-of. Depois dumas 47 cirurgias plásticas, não lembra nem vagamente o rapazinho árabe das fotos dos LPs gravados em 1960 quando cantava Diana e My Heart Sings. Leio que fez carreira em Las Vegas na esteira de Elvis, sendo compositor de alguns sucessos como My Way de Frank Sinatra e She’s a Lady de Tom Jones).

Então Paul Anka veio ao Brasil indo se apresentar no Teatro Record. Não sei como tive a ideia, mas inventei (já era ficcionista naquela época) que minha prima e o namorado iriam me levar todas as noites para vê-lo, aí não sei qual das colegas da classe pediu: me traz um autógrafo? Como eu hesitei, as demais fizeram coro, me assediaram, caíram sobre mim: subitamente eu virara o centro das atenções!

Aquela tarde e todas as subsequentes – enquanto Anka estivesse por aqui – eu carregaria cerca de 30 a 40 livros de inglês no trajeto de ida e volta ao colégio – um peso considerável! – a serem autografados advinhem por quem? Eu, naturalmente, que garatujava algo assim “Of me for you, Paul Anka” (Eu queria dizer “De mim para você” e saiu isso, até porque não sabia nadica de inglês nem ia perguntar, right?).

Repetindo, estas são histórias de rejeição: uma delas foi descoberta, pois a ladrazinha era demasiado estúpida. A outra não – mas pela estupidez alheia! Até porque as pessoas odeiam admitir que foram feitas de idiotas. Histórias que não acabam bem, não acabam nunca: são a crônica duma cicatriz.

 

A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango fantasma (1977), O animal dos motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), A ponte das estrelas (Best-Seller, 1990), Caim (Record, 2006), Toda prosa II – obra escolhida (Record, 2008). É traduzida em nove países e em dez línguas. Dois de seus contos – “O vampiro da Alameda Casabranca” e “Hell’s Angel“ – foram incluídos nos Cem melhores contos brasileiros do século, organizado por Ítalo Moriconi, sendo que “Hell’s Angel“ está também entre os Cem melhores contos eróticos universais. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura e jornalista. Foi curadora de literatura da Biblioteca Sérgio Milliet em São Paulo.

 

 

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1 comentário

  1. tristes memórias muito bem reproduzidas en seu texto. Tive vontade de continuar, saber mais das cicatrizes, das plásticas, das meninas implicantes etc.
    Um abraço
    Maria Lindgren

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