Dedos de Prosa I

Carla Diacov

Patrick Arley

Foto: Patrick Arley

signo dar

troco os santos e os vasos e os espelhos de lugar: signo obsoleto. se não troco me aqueço em demasia ao secar os cabelos. não topo com minha cara e santa efigênia no mesmo caminho dos dias das horas pelos dias. trocaria as horas dentro dos dias trocaria o minuto por um segundo: signo mó. trocar os lugares pelas imagens. iemanjá espelho são francisco a carranca oca que ganhei de um amor que já não. trocar em acordo com o peso que a coisa perde e ganha. o peso: signo da propensão ao ato: trocar. troco um beijo por um pedaço de pizza trocada no momento do encaixe anterior à entrega. troco um olho do entregador por uma palavra espelhada. troco santos hábitos por cerveja gelada. troco signos troco idade troco as capas das almofadas os nomes dos gatos. troco o dragão de são jorge pelo espelho de ontem da noite de ontem. a lua: signo de troca. troca: signo vaso trincado.

***

congelo a cara e o corpo da cara diante da árvore da primavera. me paraliso me petrifico. em sempre foi a dificuldade em encarar a beleza crua cruel colorida cheirosa bem vestida galanteadora. sinto frio nos dentes diante da árvore: signo descascado vivo. cruel demais.  corre a seiva abusada nas minhas veias. medo e mitificação. seguro não subir o olhar até a copa não é seguro. crianças me olham passarinhos com olhos idosos e carteiros. todos eles trilham meu medo sou achincalhada pelos olhos. penso em agulhas alfinetes espetos lanças. a primavera me gela. sabe meu rosto nas todas espessuras desse horror e desse horror perfumado me esgano a descer a escadaria das flores. a escadaria das flores e estou frita para seguir resistindo ao mundo: signo em monet sob influências da camisola da época em questão. questão: o signo mais comum: doador universal.

***

o signo da onça ocorre em trocas cada vez que um homem diz o mato. porque é mancha sobre mancha a onça não diz o homem. limpa os bigodes no mato mata um roedor para o filhote come o couro tritura os ossos. é o signo mar. pendure uma onça diante do mar. leve nos olhos e pendure a figura diante do mar. é o signo onça. no nada de mar dita a onça em tudo de onça todo o mundo com lua onde o mar. porque é cratera ante cratera o homem faz abismos entre o banheiro e a varanda. entender não dura: o signo da onça ocorre em trocas cada vez que um homem se diz.

***

amo. amo até no desrespeito. até no desleixe até no despeito até no desespero. eu amo. e assim será o que sei ser até que sempre. porque vou morrer amando. me entrego ao cascalho. amo lascas da rua. amo até a vez que não é minha. não parece. mas eu amo. amo por não querer acabar e amo por querer tanto de mar e de fim. amo e tenho medo de cair do mundo. e odeio. porque é signo par. é estranho e eu amo me machuca mas eu amo. e odeio. porque é signo par nunca vou deixar de amar. até morrer até matar até derramar até engasgar até esganar. amo passarinho morto e o vivo. sobretudo o morto: porque as formigas que eu tanto amo.

***

a tarde carrega a noite na lomba da palavra mais corcunda. a manhã nasce no pôr dos olhos da mulher atrás do lençol no varal. seus filhos múltiplos de amanhã: o signo da lua e do adubo. suas plantas todas e suas unhas sua boca e seu dedal. a tarde lambuza as pernas da mulher atrás da máquina de costura. o sol cauteriza seus furos seus dedos suas plantas toalhas panos de prato lençóis. no mandiocal uma preá come sua cria morta. a névoa cresce pelos raios dos olhos da bichinha dolorosa. a mulher: signo do lençol. a alvorada desce os dedos na página 2: dia bom para anoitecer o fumo no peito esposo: signo d’água. a mesma tarde carrega a manhã na lomba da mulher. a noite nasce do pôr os pratos debaixo do alimento: signo de dois gumes.

***

um casebre sem rio pela janela não tem signo. o homem corta a madeira pensando longe e longe é onde fica o rio. as formigas não respeitam mais a evolução nas redondezas. um rio faria tudo ser como abunda as redondezas de um casebre com rio: lá no alasca: signo dúbio e mantenedor do que se passa na cabeça de quem vê o vidro que falta à janela única. o homem esconde uma faca entre as pernas. faca bem próxima ao pênis. afiada feito o pênis: signo de três gumes. uma formiga passa rente carrega um pedaço do tudo: signo ímpar e provedor da vertigem que sentiria o homem. derrubaria o homem sobre a faca: signo movediço. seu duplo come e bebe além da conta num casebre inundado no alasca. a vida segue o leito daquilo que um dia foi caminho foi fadário de brocardos capados. o vidro que falta: signo da mulher que um dia. um dia: signo da vida dúbia.

***

o lume do inseto noturno: signo par com o signo vítreo. limpamos o aquário três vezes por mês. meu ajudante limpa peixe por peixe até que o brilho: signo cruzado com o signo vítreo. meu ajudante limpa meus dentes com a língua até que o desrespeito. até que o desleixe seja calcado por mim para que meu ajudante. assim é assim será não tento e nem ele tenta me enganar. limpamos o aquário: signo usual. peixe por peixe: signo sujeito na frase: em lá as escamas. o lume nas ondas de lua cheia. limpo limpamos como é limpo o mar imundo de gentes nele. cruzamos espécies durante a limpeza do fundo: signo derivado do signo oriundo: é mar não é mar. reparamos o mundo aquário peixe por peixe. o lume do inseto nada. porque o amor: signo dessa luminosa psicose.

***

sei que existe um desconhecido signo. maternal e inquieto. espera a convocação que se dará pelas cordas dos sinos. sob esse signo nascemos envelhecemos morremos sobrevivemos. com a óbvia exceção: caramujos e poetas. está para chegar o dia em que uma onda de mornura elétrica levantará todos os fios de todos os cabelos das criaturas sob o signo desconhecido. não sei se é astrológico. se é matemático ou escatológico. sei que o dia está chegando. dia maternal e inquieto feito o próprio signo. o dia em que caramujos e poetas herdam o planeta. sutilmente. temos motivos para a preocupação: signo das mutações.

***

como se constrói um muro sem letras. o homem faz o muro e alguém coloca letras. o homem destrói o muro e faz outro. alguém coloca letras: signos solares. anos se vão e o homem faz outro muro para cobrir o muro com letras. alguém coloca letras e números no muro do muro do homem: signo da inconstância sob a distância da evolução. anos de amor e luz sem letras: signo do buraco sem fim. o muro é comportado e alguém coloca ovos sobre os tijolos do cume. o homem tem um rifle e mata ovo e mata ovo e mata ovo. alguém coloca alvará: signo dependente: o homem vive e morre sem pinto algum entre numerados muros letrados. fim: signo de derrubar muros.

 

Carla Diacov, São Bernardo do Campo, 1975. Formada em teatro. Seu livro de estreia, Amanhã Alguém Morre no Samba, foi publicado em Portugal pela Douda Correria em 2015. Ainda esse ano, publicará Ninguém Vai Poder Dizer Que Eu Não Disse, também pela Douda Correria, e a metáfora mais gentil do mundo gentil, pelas Edições Macondo.

 

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *