Dedos de Prosa I

 

Desenho: Rui Cavaleiro

 

 

ANTES NÃO HAVIA ESTE FRIO

José Geraldo Neres

 

Finalmente, encontrei minha sombra. Um pouco de água. A casa está diferente. As luzes não sabem o motivo de estarem acordadas. Sinto o frio das casas vizinhas. São casas ou barcos à espera do próximo dilúvio? Nem calor nem frio. Esse líquido faz os pés doerem. A sombra faz um barulho. Água. Sou capaz de sentir sua respiração ― o Outro a atravessar a parede.

 

 

― Estou à sua espera.

― Cuidado, sou o voo subterrâneo. Procure não demonstrar medo. Os olhos são o corpo do Outro. Sinta o milagre. Somos pó.

― Estou à sua espera.

― Quatro dias, tudo se encaixa, sinta a diferença nas suas chagas.

― A água.

― Pendure-se em minhas asas! As águas não sabem o motivo de existir vítimas ou milagres.

― Vamos, temos que encontrar os Outros. Essa parede nunca esteve aqui.

 

 

***

 

 

ESPELHOS EM SILÊNCIO


Na rua de ontem não há amparo nem homens. O destino tem janelas abertas, mas estava distraído e não percebi a sua face. Ele se deteve por um instante, o tempo necessário para abandonar tudo, até o próprio nome. O passado não precisa de nomes. É um quase-deus a arrastar todas as idades. Não consigo tocá-lo. Um passo, outro passo. A infância, as lágrimas e as paredes têm olhos infinitos. A janela está diferente. Vozes. Uma estrela entra no quarto, destrói o espelho. Seu ar noturno descobre o mistério: era eu pequeno a odiar a noite e seu eterno desfile de cordeiros a conduzir-me pela casa. O silêncio abre seu peito. Não há espelhos quando as crianças se perdem.

 

 

***


 

OS QUE ACENAM DE OUTRA MARGEM

 

Quantas orações saem de seus lábios? Onde são forjadas as sombras? De qual abismo se retiram os espinhos que colocam no seu corpo? Ele acorda. O corpo reclama um pouco de verdade. Paciência. Esta é sempre a resposta. Lutamos em várias tormentas, e não consigo lembrar uma única vitória. Respeite os limites Esta é a sua penitência? Não posso assumir a condenação dos homens. Estou ocupado, já disse, não há tempo para jogos. Tenho marcas pelo corpo, e isso não afeta a maneira de encontrar outros corpos. Não consigo controlar tudo. Existem limites? Preciso respeitar os sinais do meu corpo. Abra a porta. Devagar.

 

* “Olhos de Barro” pode ser adquirido através do site da Editora Patuá

 

(José Geraldo Neres é poeta, ficcionista, roteirista, dramaturgo (com formação em oficinas e cursos de criação textual), produtor e gestor cultural paulista. Publicou os livros de poesia: Pássaros de papel (Dulcinéia Catadora, 2007) e  Outros silêncios (Escrituras Editora, 2009). Tem publicações em suplementos e revistas literárias do Brasil e do exterior. É curador do Quinta Poética, projeto que promove encontros poéticos no espaço Haroldo de Campos, em São Paulo)

 

 

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