Dedos de Prosa I

Helena Terra

 

Re

Desenho: Re

 

Passado a limpo

A Raduan Nassar      

O que registro agora aconteceu anteontem, ontem e hoje de madrugada quando abri a porta do quarto de trabalho. Talvez tenha acontecido também em outras noites e mesmo durante outros dias. Não me lembro dos dias. Passaram, devagar, sem testemunhar a nudez da luz noturna. Nunca escrevi sobre eles. Pensei que escrevia enquanto dava nomes às plantas e substantivava os perfumes e os detalhes da casa. Mas as palavras nunca foram minhas. As letras e os sons sempre pertenceram aos rasgos e à caligrafia do mundo dele, torrão alquebrado pelas estantes e pela imortalidade da mesa –  madeira de lei como a carne de seus pés úmidos –  perdido por entre os papéis amassados e os relógios repletos de hiatos.

Ele me viu espremida no canto, e não se mexeu na cadeira. Por um momento, abriu e fechou os olhos, mapeando minha presença em seu solo sagrado. Por um momento, pensei ele vai estender-me as mãos e depois aferrolhar-me em seus braços. Dos meus, escorriam saudades. No entanto, nem nossos olhos nem nossos corpos se falaram. Então, avancei, escondendo, ainda, a súplica sob a camisola. Ele não disse nada. Tampouco eu pude. Dizer seria uma desonra.  Apanhei o bloco de rascunho e um lápis e, sem arrancar a folha, fui vencida pela repentina desobediência dos dedos: vim em busca de amor, escrevi. Frase curta, certeira. Dentro e fora do coração. Ele, o náufrago capaz de chorar apenas de rir, manteve o olhar pregado nas ranhuras da mesa, provavelmente, calculando em que momento as lágrimas me avassalariam o sangue e a debilidade. Responda, insisti em uma letra desesperada, jogando o bloco em seu peito para que ele rompesse com a falsa concentração do que antes fora sua labuta. Não tenho afeto para dar foram as cinco palavras escolhidas.

Zelosa, ajeitei o bloco no lugar de costume, ganhando tempo para refletir sobre a sentença. Meu marido não seria capaz de acreditar em meia palavra do que escrevera.  Se sua verdade escapava deformada, era porque ele pensava não precisar mais dela. Precisava, sem saber o porquê, ofender, esfolar de modo absurdo. Portanto, não hesitei em dar a volta na mesa e, como em tantas vezes, parar atrás de sua cadeira. Ele continuou imóvel, decidido a ignorar-me, mas eu, habituada a seu ritmo, não me dei por vencida e, com a ponta das unhas, rocei seu pescoço e cabelos como antigamente nos pedíamos nos instantes de gozo. Ele fechou sobre a minha mão o punho, apertando-me os dedos cada vez mais e mais até a dor calar o gemido. E foi nessa altura que eu, num gesto explícito, puxei meu braço, flutuando, rápida e miserável, em direção à janela em busca de um copo de ar.

Deparei-me com o meu colo sufocado pelos botões e pelo laço da camisola.  A rotina a usara contra mim, contra ele. Cerceara-me os contornos, os vícios. A fidelidade dos meus desejos secara sob o tecido opaco como murchara a de meus seios e de meu ventre inconfundível, o ventre seco e desprezado pelo sêmen dele, pela vontade do deus e dos demônios dele. Meus demônios. Devassos e impuros, ao alcance também de minha fome e das artimanhas, todas, mescladas a tudo, misturando tudo, inconfidentes, terríveis no comando, provocando os limites do perigo.  E eu cedi a elas e voltei à ação, desamarrada, quase despida, crua, oferecendo-me para um último golpe, esfregando-me na densidade de sua pele, abocanhando os seus pelos, forçando com o pé a entrada do meu prazer, do meu amor, mas ele se desembaraçou sem pressa, ajeitando o pijama e recolhendo os pés dele um por um sob a cadeira como se eu estivesse parada na vida e ausente feito um sonâmbulo.

 

Helena Terra é gaúcha, escritora e ilustradora. Publicou contos, poemas e textos em antologias e revistas literárias e o romance “A condição indestrutível de ter sido”.

 

 

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1 comentário

  1. Nao sei porque, este excelente conto me lembrou o filme Breaking the waves.

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