Dedos de Prosa I

Mariel Reis

Foto: Antonio Paim

Lego

Para minha mãe

1.

A primeira vez na cozinha comendo biscoito enquanto a minha mãe preparava o jantar não havia nada de diferente de outras cozinhas ou de outras mães que preparam o jantar enquanto o filho come biscoitos, sentado à mesa, na cozinha. A cozinha tinha armários, potes de conserva, fogão, geladeira, mesa e quatro cadeiras. Não tinha nada de diferente de uma cozinha em que se senta para lanchar, conversar, almoçar, cear e jantar como todas as demais cozinhas em todo o mundo.

A minha mãe não parecia diferente de qualquer outra mãe que prepara o jantar para a família: o avental, o cabelo com uma rede, os sapatos de solado rasteiro, os olhos atentos às instruções dos manuais de receita, o fogão aceso com as panelas brilhantes, a pia com louça para ser lavada, o santinho no caramanchão da parede sobre a porta, o rádio tagarelando incompreensivelmente e eu sentado, comendo biscoito na lata de alumínio amassada, herdada de minha avó como todas as outras latas herdadas de antepassados por todas as mães de todas as casas de minha rua.

As pastilhas das paredes brilhantes como pequenos sóis despontavam por toda a cozinha, encimadas por uma listra azul que percorria todo o perímetro; o pequeno pinguim com fraque e o paliteiro e a cesta de frutas, o pequeno capacho para limpar os pés para quando se entra pela área de serviço, com os sapatos enlameados ou com detritos grudados em suas solas. Como toda outra casa deve ter igualzinha, sem tirar nem por, só que esta mais especial, por se tratar de minha mãe na cozinha, enquanto prepara o jantar para a família como todas as outras mães preparavam, a essa mesma hora, o jantar.

Para os maridos famintos vindos do trabalho, de pasta na mão, com o semblante grave e o jornal enrolado embaixo do braço, como o meu pai chegava e acredito que todos os pais chegavam com a mesma gravidade em seus lares, sentavam-se nas poltronas, ligavam a tevê, despindo o terno, a gravata, os sapatos, apoiando os pés na mesinha de centro, beijando os filhos, conversando amenidades como fazia o meu pai com a minha mãe e comigo, e todos os pais e mães comportavam-se da mesma maneira, porque era o rito, nada poderia ser alterado e se fosse alterado seria afetado o equilíbrio de toda aquela paisagem – a que meus olhos estavam acostumados – e tudo ruiria, o que seria uma temeridade, uma infelicidade e ninguém quer ser infeliz.

E em todas as casas todos tinham um modo de chamar pela felicidade e em nossa casa tínhamos o nosso que não deveria ser especial porque todas as outras residências deveriam ter método semelhante, e ser feliz é muito melhor do que ser triste. E ser triste é algo que todos queriam esquecer, porque não prestava para coisa alguma. Aliás, os meus pais acham que existe muita coisa triste, enumerá-las é um meio de se tornar triste também e as condenam ao silêncio como todas as outras famílias que não pronunciavam palavra sobre a tristeza. A minha mãe era bonita como qualquer outra mãe bonita e me amava como deve amar uma mãe. Ela me dizia que nem sempre as mães amam e me mostrava no jornal a notícia de uma mãe que havia matado o próprio filho. Era uma exceção, pois toda mãe amava ao seu filho e o filho amava a sua mãe como em toda a família, especialmente aquelas de propaganda de televisão.

Toda a família quer ser como a família da televisão. É assim que deve ser toda a família e ninguém duvidava de que aquele modelo era verdadeiro, porque se não fosse não estaria na televisão e aquela família não seria uma família, a mãe não seria a mãe e o pai tampouco ele seria. Eu comia biscoito sentado à mesa, esforçando-me em ser um garoto como o daquela família que era igual a todas as outras da minha rua, que era uma rua igual a todas as outras do mundo.

2.

A minha casa era igual a todas as outras e os meus colegas todos eram muito parecidos. As casas todas tinham dois andares, três quartos, sala, cozinha, banheiro, churrasqueira e piscina. Todas as casas tinham o mesmo gabarito. Os meus amigos todos se pareciam tão profundamente que passariam por irmãos, e se errassem de casa, uma noite, os pais não ficariam preocupados ou perplexos.

Os pais vestiam-se iguais para ir ao trabalho, tomavam o mesmo ônibus e voltavam no mesmo transporte, sempre a mesma hora, sem atraso, sem imprevistos, sem sobressaltos, seja em que parte da cidade trabalhassem. Talvez nem trabalhassem, talvez o ônibus ficasse dando voltas no quarteirão enquanto estávamos na escola. Talvez nossas mães soubessem de tudo isso e nos escondessem para a nossa felicidade. Porque não há nada mais importante do que a felicidade. Todas as portas tinham pregada a tabuleta com os dizeres que não há nada mais importante que a felicidade. Em todos os canteiros havia homenzinhos verdes sorridentes, cães felizes, gatos simpáticos, varredores satisfeitos, lixeiros contentes.

Não havia discórdia alguma ou maledicência. Todos pactuavam com o lema não há nada melhor que a felicidade. A minha família era partidária extremista da palavra de ordem. Bastava acordar um dia com uma leve indisposição orgânica para ela ser considerada uma ofensa ao manual de viver bem daquele lugar. Um leve mau humor situava o indivíduo à margem dos eventos, quando não era encaminhado a uma junta, que decidiria como restaurar a boa vontade, o arejamento e a abertura de espírito necessária à convivência democrática FELIZ. Às vezes tudo isso soava monótono e a única fuga era a prática hedonista dos esportes: o único momento em que o silêncio era respeitado não pelo que significava de reflexão, interiorização ou balanço interior, nada disso.

O silêncio, ali, era um apetrecho da atividade narcísica: quando os olhos percorriam regozijados os músculos torneados, as curvas boleadas como o aço e não valia por si mesmo, por seu valor intrínseco.  Eu passava a maior parte do tempo na academia para ficar em silêncio e eliminar barriga. Eu comia muitos biscoitos. Tudo isso seria normal se a minha vida não fosse afetada de modo irreversível naquele dia de muitos outros dias em que se pratica as mesmas coisas de todas as vezes, sem alteração alguma do cotidiano e que me tornaria marcado para sempre dali em diante em minha comunidade em que nada fugia ao comum.

Eu voltava da academia e me sentava à mesa da cozinha em minha casa para comer biscoitos. A trivialidade do gesto já me escapava por repeti-lo inúmeras vezes, que despido de importância, se me substituíssem o biscoito ou se acrescentassem escorpiões à lata ou que me sugestionassem comer anchovas tudo daria na mesma coisa. E talvez fosse melhor que uma das coisas descritas ocupasse o lugar do que me aconteceu, porque o extraordinário não era bem-vindo e se o extraordinário viesse seguido de incerteza, bem menos. E se fosse seguido de infelicidade, era o caos.

O caos, meu pai dizia, é um menino segurando um balão de ar vermelho em uma chuva de cometas. O caos, dizia a minha mãe, era um exército tomar a sua cozinha e acampar sob a mesa. O caos, descobriria, era o mundo escorrer entre os meus dedos e eu não saber montá-lo. Mas quem acreditaria que o mundo se desfaria?

3.

Cheguei em casa e meu pai não estava sentado na poltrona para assistir ao noticiário. Estava no banho. Minha mãe, estática na pia da cozinha, limpava peixe. Quando fui abraçá-la esbarrei em seu avental que se desfez em milhões de pequenas peças espalhadas por todo o chão. Caía em cascata. Minha mãe parecia não ter notado o avental desfeito. Milhões de pequenas peças escorriam da cintura e do enlace da vestimenta. Uma delas saltou para pia, intrometendo-se na carne limpa do peixe. Minha mãe suspendeu a tarefa para retirá-la com cuidado – como a uma impureza. Quando me desculpei, ela, com o olhar bondoso, parecia dizer não foi nada.

Meu pai saiu do banho, enrolado em uma tolha.  Ao olhar para os seus pés, percebi: estava quadriculado. Sentia fortes dores na sola e passou a massageá-la. Ao realizar o gesto, desprendia-se uma parte ou outra que formavam os dedos. Não dói? , perguntei. Deveria ser um mal passageiro, um problema de pele como as micoses e com tratamento, logo estaria resolvido. À hora do jantar, sentados à mesa, percebíamos uma tensão em nossa conversa. Minha mãe tranquilizou-me, prometendo buscar um médico. Meu pai renovou a promessa e reforçou que aquilo, naquela época do ano, era comum. Não era. Nenhum dos vizinhos tinha pés quadriculados ou roupas que se desfaziam em cascatas de pequenas peças.

O meu pai, para ir ao trabalho, passou a vestir um longo sobretudo que lhe cobria os pés, para não ser importunado pelos colegas dentro do transporte para a firma. Minha mãe tomava um excessivo cuidado para não ter os vestidos desfeitos por um movimento brusco ou por um acidente de percurso. Eu procurava uma explicação para tal acontecimento e não a encontrava. A cozinha, como todas as outras, lentamente se modificava. E não era mais como tantas outras da vizinhança. A minha mãe não era mais igual à mãe dos meus amigos, apesar de bonita e simpática.

O meu pai não era como todos os outros pais. Ele chegava em casa e fechava as cortinas para não ser visto. Chamava de lepra aquela anomalia. Triste, retirava-se mais cedo para o quarto e lá fazia também as refeições. Minha mãe tinha pernas de que se podia orgulhar, no entanto, com a metamorfose, passou a usar saias compridas ou calças jeans. O cabelo não precisava mais ser penteado, os sapatos trocados ou qualquer outra coisa alterada. Os meus pais passaram a me evitar. E logo toda a rua passou a ser como os meus pais e os filhos permaneciam como eram – pareciam divertidos.

À noite, espiei o namoro de meus pais, pela fechadura. Viam-se multiplicadas milhões de peças quadriculadas: encaixavam-se e se desencaixavam ao sabor das emoções experienciadas por ambos. A predominância por peças vermelhas, azuis e amarelas e as inúmeras paisagens formadas por seus esforços amorosos enchiam o quarto de uma poesia única. A minha mãe, na manhã seguinte, irreconhecível, porque parecia desfigurada por um programa de computador para ocultar testemunhas de crimes brutais, dirigiu-se a mim, perguntando o que queria para o café da manhã e instantaneamente transformava-se em um microondas. Segundos depois, avisava que os ovos estavam prontos. Meu pai descia para trabalhar e poderia ser confundido com um quadro cubista. Ele e todos os outros pais que tiveram suas formas alteradas no decorrer da semana do surto. Os médicos não tinham resposta para a epidemia, nem ideia de quanto tempo duraria.

4.

A casa não suportava mais o meu peso. Desfazia-se, quando me apoiava contra os móveis. Eu não dormia mais em minha cama. Acordei várias vezes no piso da sala com fortes dores nas costas por ter caído indefinidamente pelos andares da casa. Minha mãe me servia comida de plástico, montada por aquelas milhões de pecinhas.

Ela e meu pai não encontravam problemas em mastigá-las ou eliminá-las. Eu não suportava mantê-las durante muito tempo na boca e corria para vomitá-las. Todos os meus colegas das casas seguintes pediam pizza e coca-cola para quase todas as refeições. O dinheiro escasseava, porque ninguém mais trabalhava. E os poucos que ainda aventuravam-se, tinham o soldo pago em dinheiro de banco imobiliário, portanto sem nenhum valor. Os meus pais cada vez me reconheciam menos.

Eu não tinha o cheiro, o aspecto ou o rosto deles. Portanto, em suas cabeças, não deveria ser seu filho. Folheava álbuns de fotografia para lembrá-los de quem eu era. Todas as fotografias quadriculadas e ali, entre eles, aquele estranho. A minha mãe, com a voz modificada, sugeriu que me adotassem. O meu pai parecia não achar um negócio direito. O melhor era chamar a polícia e me encaminhar ao juizado de menores. Em cada uma das casas, parado à porta, estava um ônibus das autoridades, confiscando crianças normais de pais quadriculados. Vigiados por policiais, que se desfaziam e se refaziam instantaneamente, como se as milhões de pequenas peças fossem organismos vivos e independentes.

A expressão idiotizada não dizia nada a respeito dos sentimentos das autoridades ou dos pais, apenas o gesto de minha mãe encostar a cabeça no que parecia o ombro de meu pai demonstrava a sua consternação. De nenhuma outra maneira ela poderia ser percebida. Quando me despedi dos dois, alisei o rosto de minha mãe que se desfez em minhas mãos como areia, e as suas feições, se assim posso chamá-las, condoídas pela separação, pareciam revelar a verdade a meu respeito.

Entretanto, o cérebro parecia recusar-se a lhe dar crédito sobre o parentesco entre nós, e a natureza, contradita em minhas linhas, provava ser impossível. Aquilo que lhe pareciam os olhos, em misto de dor e de ansiedade, fez que o restante de voz humana escapada de sua garganta, soasse como a palavra filho. Depois se tornou um incompreensível glamerô – para nós que éramos retirados das casas, e levados para campos de concentração em que médicos estudariam a nossa faculdade estacionária.

Os pais de outros colegas olhavam estupidificados do portão para os ônibus lotados e suas mentes de plásticos não alcançavam o motivo de tantos de nós termos invadidos os seus lares e as suas vidas. Por que éramos tão diferentes? Não saberíamos nunca a resposta. Os médicos não trabalhavam mais em cura alguma. Não havia enfermidade. Ou a enfermidade éramos nós com nossas aparências monstruosas: redondas e angulares. A contradição vivida por nós era que a liberdade era fácil; arrebentar-se-ia com facilidade as paredes e se escaparia daquele lugar. Mas para onde se iria? Eu tinha saudades de minha mãe e de meu pai, lembrava de suas feições de areia ou de peças plásticas articuláveis e remontava com pedaços da parede de minha cela os retratos de ambos. Descasquei com tanta severidade a parede que abri espaço para o meu corpo atravessá-la sem dificuldade. Não tinha vontade ou coragem de ir embora. Os planos de fuga eram diversos. Construíam-se aviões, submarinos e outros transportes para se dar o fora e se voltar para aquela rua. Restava a dúvida de que seríamos ou não aceitos e a imobilidade decorrente da dúvida.

Mariel Reis é contista, poeta e ensaísta.

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