Dedos de Prosa I

Izabela Leal

 

Ilustração: Bianca Lana

 

1 de abril

 

Cena 8. Enganos.

 

acordei  vestida  no  meu  próprio  corpo. faz tempo não acontecia havia outra habitando a minha pele. despertei com os primeiros feixes de luz ela não estava lá. braços e pernas estirados um tecido elástico sem fecho ecler. reconhecia os movimentos a alegria de ser a proprietária de algo sem valor. um fruto e sua casca. ela viria ainda chegaria com a noite impregnada daquilo que em mim não era meu. roubaria minha pele seus trapos. eu tentaria não partir.

 

6 de maio

 

Cena 15. No banheiro. Impressões.

 

ninguém melhor do que um assassino para exibir um estilo floreado. gosto dessa tradução. aquilo me fascinava. you can always count on a murderer for a fancy prose style. é possível citar outras soluções: pode-se sempre esperar, num criminoso, uma prosa de estilo extravagante. ou ainda: sempre se pode contar com um homicida para uma prosa de estilo rebuscado. sutilezas na variação. qual seria a diferença entre assassino e homicida? ela também apreciava. para a vida do crime só lhe faltava uma pistola. não existe homicídio sem cadáver ela dizia. e não sei atirar. é claro que ninguém percebia. as trepadeiras se alastravam pela sacada tudo parecia muito natural. no início de abril eu adoeci. inflamação na garganta. a febre me deixou de cama por vários dias. ela passou a cozinhar cuidar da casa. não podia controlar sua presença. certa manhã depois da faxina deixou aberto o registro da banheira. a água escorreu por horas formou uma poça enorme no chão. a lua violenta entrava pela janela estraçalhava o vidro. pisei ali sem querer. distraída.

 

9 de março

 

Cena 5. Às 08:30.

 

coloquei o despertador pras 6:00 e acordei às 8:30. acontece de vez em quando. também pudera. chovia canivetes. são 8:30 de uma sexta-feira. abri os olhos. a gata estava na cama. chamava-se lolita. foi aí que ela disparou: vovô era americano. não sei o que ele foi fazer na itália durante a guerra. dirigia uma ambulância. era estrangeiro. apaixonou-se por uma enfermeira da cruz vermelha. não sei o que ele foi fazer na itália. entregou seu sangue a pele e os cabelos o coração e os rins. foi durante a guerra. sorte ter se apaixonado. talvez não. uma história triste. durante a guerra. o amor não dá conta. chovia canivetes. ela morreu de parto estava com medo. não sei o que ele foi fazer na itália. ninguém sabia. ali entre bombas obuses granadas. ela morreu de parto na suíça. estava com  medo. a chuva não cessava.

 

Izabela Leal é poeta, ensaísta e professora de literatura portuguesa. Nasceu no Rio de Janeiro. Tem poemas publicados em diversas revistas literárias e em antologias editadas no Brasil, México e Espanha. Participa do núcleo editorial da revista literária “Polichinello”. Recebeu o Prêmio Rio de Literatura pelo livro “A intrusa” (2016). Produziu, em parceria com Galvanda Galvão, as videoartes “Nam Sibyllam” (2016), “Transluciferação” (2016) e “Entre o anjo e o polichinelo” (2017). Atualmente reside em Belém.

 

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *