Dedos de Prosa I

Marcus Groza

 

Arte: Samuel Luis Borges

 

Articulações Endurecidas

 

Jade lavava pedrinhas antigas que encontrou numa gaveta da avó. Não pareciam pedras preciosas. Mas Jade as afagava com cuidado, submergidas, como se fosse o próprio corpo da avó. Morrer é se converter em pedra. O corpo duro em cima da mesa do velório lhe deu essa impressão. As articulações da mão estavam endurecidas. Não sei por que Jade tentou dobrar o punho da vó, como fizesse um exercício de fisioterapia que ela mesma tinha feito quando quebrara o braço. Tentava talvez dar ânimo à vó. Mas logo tiraram a menina abobada de perto do corpo. Jade: que aliás fisicamente era muito parecida com a vó, ou com o que ela tinha sido na juventude.

_ A vó gostava muito de você! disse a mãe para Jade, enquanto a menina continuava a alisar as pedrinhas coloridas.

A vó Vera foi a única de toda a família a aceitar a gravidez da filha, mãe solteira, e até se separou do marido que queria botar a filha grávida no olho da rua. Cidade de interior, moralismo e preconceito é coisa farta. Quando Jade nasceu, o pai ainda zombou, dizendo que ela tinha parido uma retardada. Os fofoqueiros da família diziam que devia ser filha de algum primo. No ano seguinte, quando o pai se finou, a mãe de Jade não foi no enterro e ainda postou na Internet: “Não me venham com condolências. Faz muito tempo que não tenho pai.” A vó Vera desaconselhava esses rancores, até podia entender, mas rezava para que os nós do rancor desatassem do peito da filha.

A gaveta que Jade estava arrumando tinha também um cachimbo. Mas ela fingia estar atenta às outras coisas. Com uma bacia de água ao lado, lavava as coisas da vozinha. Só de vez em quando ela lançava um olhar de rabicho para o outro lado da gaveta onde estava o cachimbo da vó. Sabia que se pegasse o cachimbo, a mãe ralharia, pois esta vez ou outra também lançava um olhar pra ver o que Jade estava fazendo, enquanto desocupava o armário.

_ Uma vez quando você tomou acetona, foi vó que levou você pro hospital!

_ E eu fiquei bêbada, mãe?

_ Não, mas teve que fazer lavagem no estômago.

_ Mas se não tivesse feito lavagem, eu ficava bêbada?

_ Não, Jade! Isso foi quando você era criança…

Jade não é mais criança. Mas sabe que é “meio retardada”, como os meninos da rua tantas vezes repetiram. Por isso ela pode cobiçar o cachimbo; e planeja pegá-lo escondido. É só esperar: porque primeiro a mãe conta alguma história da vó, depois algumas lágrimas rolam. E vai ser no próximo rolar de lágrimas que vou apanhar o cachimbo e jogar pra debaixo da cama.

Jade não é mais criança, mas também não pode fumar. Fumar faz mal. Jade é meio retardada, mas não deixou de ver que, no velório da vó, a mãe saiu pra fumar e voltou cheirando a cigarro.

Entre um acontecido e outro desenterrado da memória, a mãe começou a chorar de novo e logo saiu pra se assoar no banheiro. Jade então teve tempo de pegar o cachimbo, botar na boca e dar uma tragada imaginária. Depois o jogou para debaixo da cama.

_ Jade, vamos parar um pouco. Pra almoçar?!

_ Pode ser mãe, tô com fome.

Na verdade, ela tinha na boca um gosto da poeira velha acumulada no fundo da gaveta. Pensou nos restos mortais da vó, que estavam dentro de uma pequena urna na sala. Estava sem fome. Mesmo assim ela e a mãe foram almoçar. Jade comeu com gulodice.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

Hieróglifos

 

 

Mãe, deixa ser meu o quarto da bagunça? Era desejo antigo. Ter um quarto. Quase uma casa. Não era só veleidade de menino. Deixa ser meu o quarto da bagunça! O caçula já tá grande, pode bem dormir sozinho. Mas o quarto de vocês já é uma bagunça! Olha, Mãe! Sonâmbulo descabido. Olha que eu monto cabana de lençol na garagem. Convoco os amigos, chamo os vizinhos. Trincheira de brinquedos e livros. E, quando crescer, faço festa durante a quaresma. E ainda viro boêmio! Não acredita?

Ela deixou. Agarrei tarefa de ajeitar tudo: traz a cama, cola um pôster, muda o espelho. Mãe, vou fazer uma tabela de basquete na parede! Bem em frente à cama… Pode? Pintei de amarelo o quadrado, circulei com preto e, para fixar a cesta, furei os dois exigidos buracos. Mas durou pouco. O queixo duro respondeu de través. Pisou tenso em desalento de é meu, é meu, é meu… Então a Mãe desaprovou, emprestou da bruxa uma vassoura e foi redesenhar o trabalho: tirou a cor de dentro do quadrado, espalhou por toda a parede o novelo amarelo embaraçando. Restos de palha da vassoura grudados na tinta. Colagem rupestre. Parede ficou amarela e branca. Pintura abstrata. Parecia um ninho profanado, com a gema dos ovos escorrendo.

Zanga de leão ferido: fui lá e também registrei minha raiva. Bosta. Buceta. Porra. Um ou outro palavrão genuíno desses escrevi… e até uma suástica desenhei. Mas as asas da suástica pus voltadas ao contrário. Sabe que nem quatro unhas encravadas? Lascou. Prédio do amor e da caça. Eficácia do signo. Primeira e última dádiva. E assim a parede muitos anos se preservou: contornada com gemas da vassoura improvisada em pincel e as minhas palavras raivosas. A parede do quarto voltou a ser, mais do que nunca, a parede do quarto da bagunça.

Com o tempo passou também a painel de recadinhos. Rasuras. Quem vinha em casa se sentia no direito de um cantinho pra rabiscar. Primo pequeno chegava e queria provar a todos que já sabia escrever o nome. Depois a medição dos adolescentes crescendo também era anotada ali. Assim foi: borrão desencantado da vida. Teste do estêncil. Resto de massa corrida. Sujeira de pincel…

Quando, em certa ocasião, veio o padre dizer missa aqui em casa, o canto de ouvir a confissão ficou sendo justamente ao pé da nossa parede rasurada. No quarto da bagunça. Debaixo da suástica de asas invertidas. Antes, porém, em gesto de contrição antecipado, minha mãe foi lá e cobriu de branco os termos mais técnicos. Foi coisa pouca. Não chegou a mudar o sentido da obra.

Outra vez, a parede recebeu também inscrição do tato em vermelho durante o sexo. Dedos desenhando com sangue menstrual da primeira namorada. E a mancha de sangue lá ficou – o vermelho se tornando marrom, quase preto – nem sei até quando.

Hoje, manchas todas devem estar inda lá na parede, debaixo de alguma camada, das tantas que foi preciso dar, em vão, para cobrir a ira, o amor e os carinhos que sujam de vida todo o lugar.

 

Marcus Groza é poeta e ficcionista. Autor do livro “Sossego Abutre” (Ed. Patuá – 2015), é coeditor da Revista Abate e da Revista Saúva.

 

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