Dedos de Prosa I

Vinícius Canhoto

 

Pintura: Cláudia R. Sampaio

 

VAMPIRA DEBAIXO DO SOL

 

Sempre a procurei pelos livros, mas foi na biblioteca que a encontrei ao ver seus olhos estendidos sobre as mesmas órbitas de Der Zur Macht* que me revelaram milagres e epifanias de um crânio e um amor sem salvação. O ritmo de todas as caveiras prenunciava nosso diálogo com cadáveres no perímetro de sua boca sedenta e inflamada. Eu estava prestes a me desfazer como gelo afogado em whisky não bebido por seu batom, mas procurei pelo sol, procurei por um bar e, na medida que nossos passos se perdiam em busca de refúgio pelas calçadas, cresciam nossos delírios. A vi trazer o mundo na orelha como um brinco que se poderia perder em qualquer criado-mudo incapaz de nos denunciar. Eu sabia de seu desejo de violar todas as superfícies e todos os homens da superfície, também sabia que meu destino não seria diferente dos demais. Um doce mormaço nos fez levitar até os tentáculos de um polvo metálico para beijarmos o púbis das cervejas em copos de pecado. Nos excessos do dia, abriria a cortina da noite. Tremores de uma alucinação feroz em giros excêntricos pelos porões e sótãos de minha cabeça arrastaram seus joelhos para onde seus pés, por prudência, não deveriam ir alimentar o resto da vida com uma hora de loucura.

Hotel de carícias. Hora premeditada em que eu podia abrir as janelas de seu vestido e os olhos para a cumplicidade da lua e aproveitar o medo das nuvens de te ver transfigurar-se na penumbra onde seu rosto poderia praticar um crime delicado. Abri a porta de seu tornozelo que é a entrada de seu desejo. Sua penugem tão próxima das asas, dos dedos, do pênis, o sorriso de sua suave anatomia, os pequenos pêlos da perna que refletiam as luzes dos candeeiros e se deixavam colorir de cobre como seus cabelos se deixavam tingir com meu sangue. Não, nunca mais sairei do uivo de seu cão ou das páginas de seu caderno de adultério. As datas incandescentes contornam fragilmente as folhas de seu calendário bordado a fogo a incinerarem nossos dias. Beijos azulados deslocam seu ponto de fuga para além dos limites habituais e retalham a silenciosa atmosfera donde o suor é amigo e consorte dos amantes de março protegidos em alcovas das estrelas despregadas e das águas que encerram o Verão. Demência apaixonada onde encerramo-nos em quartos, onde a despi de todos os corpos que cobriram seu corpo. Jogos de dados lançados em lençóis pálidos, teu sexo refletido no espelho e chamando por mim. Naufraguei no cio das coxas como dois rios que dividiam o mar tingido por menstruações que afogaram tantos semens na travessia do canal da mancha em colchas que escondem segredos e ocultam digitais. O crime é mais importante que o castigo e as paredes possibilitam inserções mágicas e fórmulas algébricas que nunca se repetem. Arranquei da sua face todas as máscaras de rostos amados. Eu soube decifrar seus jogos noturnos. Pouco a pouco os trapézios de néon avançavam através das sobrancelhas cerradas da meia-noite nos meandros de armas e rosas. O vinho nos bebe e macula a cama. Os olhos de dois morcegos famintos abandonaram sorrateiramente as feridas nos travesseiros abertas por nossos poemas. Cortina de cabelos transforma qualquer imagem em miragem. Uma roleta giratória de revólver em permanentes disparos sobre a rosa carnívora. O perfume na garganta de espuma e fúria das invasões bárbaras. Nossas bocas só depois da madrugada fazem passar os pássaros em revoada sob a pele, porque o amor é só uma palavra, porque o céu foi nossa última chance essa noite.

O lápis do sol desenhava o contorno de seu corpo e tingia as marcas em meu pescoço. Seus caninos sorriam para mim.

 

* Vontade de Poder

 

 

 

***

 

 

 

DO AMOR DE DEPOIS

 

Ele imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento de alegria e impudor. Ela boca cheirando a álcool a equilibrar a lucidez de um cigarro. Eles numa atmosfera de embriaguez a viajarem entre o essencial e o acessório a lançarem dados e calcularem probabilidades impossíveis de encantos mútuos. Ele a compor um sarau de ensaios sofísticos. Ela a utilizar toda alvenaria da sedução. Eles a testarem o dom de reinventar o tempo e o espaço a partir de experiências. Ele a descobri-la ao acaso em caravelas naufragadas em mesas e toalhas. Ela a pensar que numa era o encontraria voluntariamente nos cafés e quartos. Eles a conversarem sobre poetas malditos, livros lidos, desafetos amados e moinhos de vento. Ele a esconder seus segredos e sussurrar suas senhas. Ela a contar tudo a cada minuto sua íntima história de desejo. Eles a excitarem a fúria das paixões num esforço de fé no tempo que endurece as coisas até chegar o momento em que se pode quebrá-las entre os dedos. Ele a sensação do porvir como um sonho irreal. Ela uma mulher com quem beber e esquecer entre silêncios e risos. Eles a se amarem com todas as forças de um tempo ancestral pendurados em fios imaginários na superfície da paisagem. Ele a conjecturar o roteiro de uma viagem sem volta. Ela mãos fecundas a gerar ironia e loucura. Eles a lutarem contra bocas famintas que estilhaçam vértebras e cospem ossos no asfalto. Ele caminha ao cambaio das ruas de verão. Ela a rasgar sua face mais contratual. Eles a beberem todos os delírios e devaneios mais profundamente que qualquer demônio. Ele corpo puxado pelo avesso. Ela corpo devassado. Eles a trocarem imagens do mundo através das bocas mudas. Ele linha do equador entre os braços. Ela mapa-múndi dentre as pernas. Eles a admirarem a miragem dos eternos corpos despidos. Ele a lê nua e decifra seus enigmas. Ela a sentir em seu dorso os dedos que tocam os acordes da melodia em sol maior. Eles a esconderem o prazer de se digladiarem numa arena que revela uma verdade em que não se reconhecem. Ele alma de anjo decaído. Ela carne de vinho e saliva de cerveja e sêmen dos suicidas. Eles a criarem uma primavera de pernas entrelaçadas e se perfumarem com todas as fragrâncias que envolvem suas peles num raio de quilômetros. Ele a colher laranjas em seu ventre e morder o pêssego do peito perdido. Ela a arder sobre um lençol mordido por flores molhadas de sigilo e sal. Eles a trocarem carinhos e confidências como cúmplices de crimes perfeitos. Ele com a certeza científica de que as pérolas se formam por meio de agressões externas para serem saqueadas do sofrimento das ostras. Ela a sentir seu mundo guiado pelos cinco sentidos que criam ciclos de culpa e prazer nos temores da vida de refugiada. Eles a roubarem de seus outonos e entranhas os frutos que incendeiam o paraíso ao imaginarem que inventaram um deus. Ele a adentrar seu labirinto e arranhas suas paredes com inscrições e datas. Ela o livro que ele nunca escreveu. Eles a dobrarem esquinas opostas e trilharem seus caminhos nos quais fantasmas os aguardam inteiros. Ele a beijar seus olhos de ressaca do amor de depois. Ela?

 

Vinícius Canhoto é escritor, professor, doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo. Autor de “Livro do Esquecimento”. 

 

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *