Dedos de Prosa I

Paulo Bono

 

Desenho: Raquel Piantino

 

A puta de 50

 

Era uma cidade no meio do mato. Um desses fins de mundo onde você não encontra outdoors, flanelinhas, engarrafamentos, nem o M da McDonald’s. Lugares assim a solidão chega antes da novela das oito. Então perguntei ao vendedor de algodão-doce. Ele me garantiu a localização exata do puteiro.

Eles chamavam o lugar de Castelinho. De um lado, uma borracharia. Do outro, apenas mato e uma cerca torta. Nenhuma lâmpada acesa do lado de fora. Mas era possível escutar alguma música tocando fogo lá dentro. Havia esse tipo com boné sentado numa bicicleta. Apoiava-se entre uma Kombi e o portão de entrada.

– E aí, campeão – eu disse – as meninas estão no serviço?

– Estão. Você é de Salvador?

– Sou. Desculpa qualquer coisa.

– Quer ovo?

– Devagar, que história é essa de ovo?

– 7 reais, a dúzia. Galinha de quintal.

– Parece bom. Mas hoje só quero uma xotinha caipira.

– Mas se quiser ovo, meu nome é Zé da Monark.

– Tudo bem, Zé.

O cheiro de buceta parecia grudado nas paredes do Castelinho. Havia pouquíssima luz, mas achei uma mesa no canto. Do outro lado, um grupo apostava a vida e a morte numa mesa de sinuca. Incrível como esses caras do interior manjam de sinuca. De sinuca e de fazer cálculos rápidos. Havia também um pequeno salão onde dois casais dançavam uma versão brega de One, do U2. Apesar da música, eu escutava o choro de uma criança chegando de algum lugar daquele inferno. Claro, havia também as mulheres. Putas feias e mal vestidas. Sentadas no colo da rapaziada, bebericavam cerveja, riam das desgraças. Já que eu estava por ali, pensei em procurar a dona do Castelinho. Sempre achei que trepar com a dona de um brega era como chegar à fase final e encarar o chefão de um videogame. Então esse sujeito se aproximou. Alto, branco, pele avermelhada, quase careca. Parecia muito puto com a vida que Deus lhe reservou. Não sei dizer se era canhoto, mas não tinha o braço direito.

– O QUE VAI QUERER? – disse.

– Me diz uma coisa. O estabelecimento tem um proprietário ou uma proprietária?

– MINHA MÃE.

– Ah…

– O QUE VAI QUERER?

– Vodka.

– SÓ TEM CACHAÇA.

– Serve.

– MAIS ALGUMA COISA?

– Desculpa perguntar, mas sua mãe parece com você?

– PARECE. MAS O NARIZ É DE MEU PAI.

– Então me vê só a cachaça.

Logo o herdeiro do castelo trouxe meu copinho.

– Cara, acho que tem alguma criança chorando por aí – eu disse.

– É MEU FILHO.

– Então tá em casa…

– MAIS ALGUMA COISA?

– Tudo certo, chefe.

Lá se foi o paizão. Dei o primeiro trago e fiquei ali tentando lembrar como a vida me trouxe até aquela mesa. A minha falta de adequação. A falta de grana. As escolhas erradas. Os anos que passavam. A vida encolhendo e se escondendo no meio do mato. Então dei mais um trago e notei aquela puta sentada no fim do balcão. Ao contrário das outras, estava só. Não bebia, não ria. Só estava ali, no escuro. Esquecida. Essa mania de me identificar com os desprezados me fez levantar e me aproximar do balcão. Morena. Cabelos longos. Um pouco magra além do ponto. Mas a novela já havia acabado faz tempo e eu estava subindo pelas paredes.

– Qual o seu nome?

– Arlene.

– Por que está sozinha, Arlene?

– Não gosto das pessoas.

– Inteligente da sua parte.

– Você também não tem amigos?

– Só um. Zé da Monark.

– 50.

– O quê?

– Chupo, dou o xibiu, faço ver estrela.

– É tudo que preciso, Arlene.

Arlene me puxou pela mão e me levou por um corredor sem fim, onde você só escutava as putas se divertindo e o choro estridente do bruguelo. O quarto era escuro. Só uma cama e uma cortina na janela. Arlene sentou e começou a chupar. Pedi um tempo. Corri pra janela, mas vomitei na cortina. De repente, a criança parou de chorar. Respirei um pouco o ar gelado e aquilo me fez bem. Então bateram na porta. Bateram forte. Abri e era o Canhota. Com um só braço, o escroto fazia um barulho desgraçado.

– Vai me dizer que Arlene é sua irmã? – eu disse.

– TERMINOU?

– Como assim?

– TEM MAIS GENTE QUERENDO O QUARTO.

– Você que manda, canhota.

– ANDA LOGO. E NADA DE BATER NA MOÇA.

Voltei pra Arlene. Mandei ficar de quatro, botei a camisinha e enfiei. Quer dizer, acho que enfiei. Ou meti no meio das pernas, não sei, talvez minha ferramenta não fosse compatível, só sei que eu não sentia as paredes. Veio a suadeira. E o suor ardia nos olhos. Foi uma luta, uma caçada, a batalha do século, vi estrelas e cometas, mas consegui terminar. Então Arlene se levantou, acendeu a luz, se vestiu e ajeitou o cabelo. Foi quando peguei um lance estranho. Parecia que Arlene não tinha um olho. Ou era um olho de vidro. Ou era uma mancha branca. Deixei soltar um “puta que pariu!”.

– Algum problema? – disse.

– Ham?

– É meu olho?

– Que olho?

– Se incomodou com meu olho?

– O que tem seu olho?

– VOCÊ JÁ SE OLHOU NO ESPELHO?

– Não tem nada demais no seu olho.

– VOCÊ TAMBÉM É FEIO!

– Arlene…

– VOCÊ É MAIS FEIO QUE DOR NO RIM!

– Calma, Arlene. Vai acordar a criança.

– VOCÊ É FEIO COMO A DOR DA MORTE!

– A gente não precisa disso, Arlene. Vamos ficar numa boa. Olha, vou te dar 100. Você é linda, Arlene. Você é linda.

Arlene sorriu na mesma hora que escutamos o bracinho pesado do Canhota. Então fizemos as pazes. Depois tomei mais um trago e deixei o Castelinho. No caminho de volta, enquanto respirava aquele ar gelado, comecei a imaginar. Eu podia abandonar tudo, morar naquela cidade perdida, casar com Arlene, montar uma mercearia bacana. Esquecer a cidade que me esquecia. Uma vida sem fila pra entrar em elevadores. Pensamentos que se perderam com os latidos de uma suruba de vira-latas. Eu precisava descansar. O ônibus saía às seis. Acertei relógio pra 5h45. A rodoviária ficava bem ali ao lado da pousada de portão amarelo.

 

Paulo Bono nasceu e cresceu nas ruas da Lapinha, em Salvador. É flamenguista, publicitário, escritor e roteirista. Publicou Espalitando (Cousa, 2013, Contos e crônicas), participou da coletânea Casa de Orates (Mondrongo, 2016, Contos) e escreveu O Garoto (Saturno Filmes, 2014, 14 min.).

 

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