Dedos de Prosa I

doce lâmina

Jorge Mendes

 

Foto: Kenia Vartan

a palavra é o modo mais puro e sensível de morrer e fazer morrer
felix guattar

ocorre o corte. quer dizer, toda palavra primeiro sangra por dentro. depois é o vermelho escorrendo da página em branco. o texto.

– conheço os destilados e as frases do último bar aberto, já posso esquecer.

desnecessário, porém, ressaltar as palavras desespero e cariótica. basta a extensão fria do fio afiado da língua rabiscando a carne (a pele apenas envelhece ao sol. inútil pergaminho. contra-capa), o brilho úmido da ponta do punhal propondo o único ponto final possível ao corpo, porosa esquizoesferografia do desejo.

decerto não se trata de leitura dinâmica com molho rosé para corações voadores & outras miopias dissertativas dos poetinhas com flores no cu. antes é a inapelável solidão dos olhos enclausurados no signo rígido do silêncio. o coração sem explicação nenhuma sussurrando a última estrofe da noite lívida na hora da autópsia semiótica.

como uma vírgula bêbada, quem sabe, haja um olhar mais plano sobre a superfície (isso durante a queda), uma possível desmaterialização gestual no espelho do banheiro. então é a frase noutra forma, concretamente pingando, evaporando e sendo absorvida pelas paredes, criando pedras, descendo pelo ralo, não importa.

ademais, foda-se o foco narrativo. fica o torpor. a pulsação do talho. queima, é vero. arde. mancha o azulejo e o papel. causa pavor aos críticos ligados a higienização e catalogação da frase incendiada.

escorre, todavia.

inútil acrescentar lágrimas monossilábicas e/ou fluidos genitais ao parágrafo. isto é, o amor e outros dejetos não têm nada a ver com a obscura e amarga sentença – escrita com esperma, nuvens e saliva – do estúpido e sempre patético coração. ou seja, a vida – essa puta de refrão fácil e rimas sórdidas, verbo biológico – não ruboriza: aborta azuis. cala infinitos. fecha fluxos. esvai-se, e pronto.

provavelmente algumas imagens maquínicas cruzaram o espaço. rizomas. um sorriso de mulher saindo do mar (como uma interrogação líquida), algumas frases metonímicas talvez ainda dancem em volta da mesa. nenhum futuro-devir, é certo.

de qualquer maneira, não será lírico e nem em forma de meia-lua o traço no pulso. será sim negro e patético e sem retorno o baque. no fim da página, o vácuo.

restará a ruptura. o corpo inerte. o riso de escárnio na metáfora grotesca estendida na sombra. depois é a eternidade (um gosto de alfarrábios no céu da boca), uma sentença azul queimando dentro da cabeça. a bibliografia do medo. a música parada e a inevitável palavra esquecimento sumindo na neblina.

linguagem, é o nome da coisa.

vire a página, irmão.

(Jorge Mendes é formado em história, “quase” pós-graduado em teoria da comunicação pela eca-usp (abandonou o mestrado pra viajar por aí), avesso a qualquer tipo de glamour, leitor voraz de brautigan, amante do vinho e da cachaça, pede pouco e recebe na cara e nunca tem ninguém por perto quando bate a vontade de cortar os pulsos)

 

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2 Comentários

  1. já conheço esse jeito de andar…deu-se tudo assim que li aquela primeira linha, muito tempo atrás, que me convidava a voar e deixar tudo o mais, desde o resto, estar.
    segredo nenhum: eu gosto, mas é muito, da provocação febril do que escreve amadurecido cada vez mais. tem coisas que na verdade, você nem disse. meio mudo é você. eu e mais uma já sua enlouquecida platéia, é que achamos, que você existe. e que tudo que escreve é meu nosso. beijo, moço Jorge. \o/

  2. Um prazer imenso ler JORGE MENDES na DIVERSOS AFINS.
    Espero + e mais…

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