Dedos de Prosa II

Sérgio Tavares


Arte: Julia Debasse

 

 As moscas

1.

Airam caminhou até a mesa, matutando o que poderia fazer. Nua, cortou o ar espesso e febril, os pés em carne escura macerando a terra cozida. As moscas esvoaçavam em torno do seu corpo, atraídas pelo almíscar do sexo e a doçura do leite em placas viscosas à roda dos mamilos rachados. De quando em vez, ela consentia aos insetos seus banquetes. Por que somente a criança e o marido deveriam ter direito a essas partes? Airam se retirava até o catre de palha, onde o casal se recolhia, e se solidarizava ao apetite das moscas. As pernas abertas configuravam o convite ao fartum que atraía as famintas. Era, em si, um estado de sossego para Airam. Uma desaparição em deleite e estupor, que transportava suas ideias para um vale de montanhas escarpadas recobertas por gradações de verde e azul, de frescor e absorvência. Sentindo as moscas sugarem o suco da fenda, as patinhas peludas roçagando seu ventre na escalada rumo aos seios, Airam se intoxicava com magras doses de prazer. Um episódio raro de enlevo capaz de evocar epifanias do céu ou do inferno.

2.

Airam acercou a mesa e socou o tampo com o punho fechado. Um gesto feito de brusquidão para deter o choro desabalado da criança e espantar os saqueadores de provisões que se fartavam daqueles restos vitais. Uma nuvem em vários tons de zumbidos ergueu um voo errático, enquanto dois calangos escaparam por uma rachadura no barro que conformava as paredes começando a esfarelar por conta do calor atroz. Os clandestinos respeitaram Airam, a criança sequer por um triz. Os gritos incontidos percorriam a constituição tosca do casebre de taipa, sem fuga naquela caixa abafada e contundente, irradiada pela fornalha do meio-dia. A criança estrilava e se engasgava com o sopro áspero que extraía dos pulmões. Iové era o seu nome. Cinco meses de vida, cria de Airam e o marido, parida sobre palhas pelos meios naturais dos mamíferos. Dor e fome eram a causa do desalento (a carne recém-nascida sendo cozida), conquanto Airam acreditasse que havia uma mentira naquela algazarra, uma ação dissimulada para ruir de vez com sua sanidade.

Do punho fechado, ela dobrou os dedos, aferrando as unhas no tampo. A mesa avariada, conforme Airam, trazia singularidades daquela vida vulgar. Inanidade era a principal delas. A mesa era indiferente aos castigos da estação, não se importando com o surro que se alojava nos sulcos da madeira, com os insetos escrotos que escalavam seus pés. A mesa não reclamava ou sentia. Não se apegava ao desespero da criança. Airam tampouco. Não conseguia, por outro lado, deter a libido do marido que evoluía mesmo sem complacência. Neste caso, ela simplesmente se colocava de quatro, deitava a testa na palha e se entregava à condução dele. O calor certamente tivera a sua parte nos primeiros coitos, mas, de maneira paulatina, o desejo foi minguando à medida que eles pagavam a consequência nociva do ato: a cópula aumentava a fome e atraía mais moscas.

3.

Havia outra razão para a secura sexual entre Airam e o marido. Alisando o tampo da mesa, ela sentia no contato dos dedos as cicatrizes e lascas na madeira, que era a mesma sensação de acariciar o próprio corpo. Airam nua era uma tábua sem espessura e desidratada. Criatura minguada, tinha pernas na feição de galhos secos. Os seios flácidos pendiam num abdômen desenhado por faixas de costelas, pelos pubianos lhe arvoravam do ventre ao umbigo. A tez era escura e lustrosa do tom da resina que antes cobria a mesa. Rosto encovado, olhos grandes e escuros, cabelos crespos na altura dos ombros. Airam tinha em si a vida insustentável daquele deserto, a própria esterilidade do solo. Sua aparência era algo de dar pena. Um corpo fraco, um útero doente. Por duas ocasiões, antes de Iové, ficou grávida durante alguns meses, antes de abortar naturalmente. No primeiro caso, três meses; no segundo, dois. De modo que, ao constatar o atraso da regra, crescia o temor quanto à possível gravidez e, inevitavelmente, a sua descontinuação. Sendo assim, a gestação de Iové foi o pior período em que Airam passou sozinha, mais que os dias perseguidos pela fome ou pelo exício. Assistir às mutações do seu corpo numa contagem regressiva até o momento em que a primeira nesga de plasma deslizou por entre as suas pernas foi cruel o suficiente para anular qualquer traço da felicidade que acomete a mulher que ganha um filho. Airam pensava nisso, alisando ainda o tampo, depois agarrou uma cumbuca e encheu com a água concentrada no fundo da caçamba. Engoliu o líquido com as larvas. A gravidez foi um erro; ter se completado, uma tragédia. Dando vida ao filho, ela se matava.

4.

Iové trovoava a valentia da tempestade que nunca virá. O gume da voz rasgava o ar em golpes grosseiros, lanhava as paredes do casebre sem compartimentos distintos. Em Airam, penetravam as ideias a ponto de fabricarem pensamentos cruéis. Na companhia das moscas, ela se postou sobre o ninho feito de palhas e panos, fitando o berreiro da criança através da proteção de filó. Iové estava uma bola de sangue. Cinco meses com a compleição de um feto, todo em pele e osso senão pela barriga dilatada, um reprodutório de vermes. Tinha cólera, a causa da pasta lodosa que manchava os panos e os flancos do corpo franzino. Por isso chorava, estava sujo e doente. Subalimentado. O cheiro das fezes deixava as moscas em polvorosa, afastando-se do corpo de Airam, e desabando feito contas escuras à procura de rasgadelas no filó que cobria o ninho.

A falta de amparo transfigurava o rosto macilento num esgar afogueado. Chacoalhava os braços em busca de ar nos finos intervalos entre berros e soluços. Iové bramia, rugia, balia, clamava, esperneava e, quanto mais o fazia, mais recendia o ódio em Airam. Era um embuste, ela conhecia aquele pequeno verme. Sabia que toda a choradeira se valia ao único desejo de sugar seus seios. Mas chupar o quê? Estavam tão secos quanto os poços que circundavam o casebre, as árvores que se retorciam até estalar. Se quisesse extrair dali seu sangue, ela estava à disposição. Ainda que, depois de tantas secas, ela soubesse que o sangue deles se tornara uma massa escuriça que não mais derramava da carne. Airam voltou a pensar no sentido da gravidez. Para que vir a esse fim de mundo? Para berrar contra ele? Por que simplesmente não morre em silêncio, da mesma maneira que fizeram os cachorros, as galinhas e os porcos?

Sem resposta, Airam arrastou-se até um canto da parede, onde repousava um cesto de vime. Ali guardava vestimentas e panos, tecidos conservados à temperatura da fornalha. Catou um pedaço de malha branca e retomou a posição sobre o ninho. Iové chorava aos gritos, no entanto, à menção de desatar o nó que prendia as duas caudas do filó, foi aquietando-se de maneira paulatina, prestes a não emitir um silvo. O rosto recuperava a palidez, olhos vidrados nos movimentos pendulares dos seios da mulher acima. O silêncio tão esperado deu-se então. Sobraram apenas os zumbidos das moscas. Um mal menor, contudo. Os insetos se aglomeravam nos pulsos e dedos dela, ferrenhamente em busca de um acesso ao ninho desfeito. Tomada por um gesto só legitimado pela maternidade, Airam umedecia a malha em toques na ponta da língua, em seguida apagava o desasseio no corpo da criança. Iové assistia ao zelo calado; talvez confuso, talvez se sentindo vitorioso. Certa apenas era a avidez para abocanhar os seios doces como as frutas que não sabia existirem.

5.

Minutos depois, Iové estava limpo o suficiente para não causar asco. Airam então o alçou pelas axilas e o retirou da redoma. A entrada franca foi um convite mais que irrecusável para as moscas, que avançaram a toda sobre a pasta lodosa com suas sedes por imundície. Airam sentia a criança. Tão leve e frágil, que seria fácil demais matá-la com uma queda. Um descuido, juraria ao marido. Simplesmente ela teria de recolher os dedos, um por um, e naturalmente Iové bateria de cabeça na dureza do chão. Quebrar o pescoço, uma saída sedutora. Airam puxou um dedo, depois outro, o terceiro e desceu a criança até o alento do colo, apoiando suas costas no antebraço dobrado, a testa colada na armação ossuda da clavícula. Iové se inquietava com o cheiro do leite ressecado no seio, balançando as pernas no ar. Olhos grandes e escuros semelhantes aos da mãe, ela o encarava. Um rumor de excitação, um agito de súplica. Insânia, Airam entoava à medida que descia o braço até a medida do desejo da criança, antevendo a pressão que lhe cobraria um grito. Iové abocanhou seu seio com gana. Uma mordida de gengivas, dolorida e malograda. Matar é bondade aqui, disse para si mesma. E tomada por um nojo próprio, cuspiu, com toda força, no rosto daquilo que tentava extrair dela a vida, tola criatura.

6.

Sob a ditadura do Sol, eles aprenderam a viver entre perdas e punições. A sobrevivência desvalida dessa condição era não só impossível como inarrável. O Sol não permitia rebeliões. Controlava o tempo, os imperativos do corpo, a textura do cenário e os flagelos diários; um reinado fundamentado em repetições. Na aragem da manhã, o avanço do manto nácar vestindo a terra; ao meio-dia, o fervilhar do ar e a explosão das cores; à tarde, o céu maciço em tela de delírios de fogo e o peso do desencanto; à noite, uma ausência furtiva, sabotada pelo cheiro ferroso e o halo de vapor entre as constelações. Os que viviam sob sua tutela, aprendiam a sobreviver segundo sua permissão. Os cárceres do Sol eram ceifados de livre-arbítrio, criados numa colmeia de dissidência e torpor. E, a quem relutasse, o calor se encarregava de ruir a sanidade, perambulando sem trégua entre as rachaduras do solo até esfarelar. O Sol transformava o espanto da vida em condenação desde o parto, preservando a imutabilidade dos dias a fim de não decifrar passado e presente, tampouco futuro. Semeando a desesperação entre os sobreviventes da seca, revelava que suas existências dependiam restritamente de seguir os mandamentos. A vida que tinham era o barro que pisavam, cuspiam, construíam suas moradas, enterravam os mortos e viravam ossos. O barro eram eles; eles eram o barro cozido pelo Sol. Airam, Iové e o marido, todos feitos à Sua semelhança.

 

 

(Sérgio Tavares é jornalista e escritor, autor de “Cavala” (Record, 2010), vencedor do Prêmio Sesc Nacional de Literatura. Também foi premiado no Concurso Literário da Fundação Escola do Serviço Público (Fesp/RJ) e tem textos publicados nas revistas “Cult”, “Arte e Letra: Estórias M”, e no jornal “Cândido”, entre outros. O livro de contos “Queda da própria altura” (Confraria do Vento, 2012) é sua obra mais recente

 

 

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