A SOMBRA E EU
Homero Gomes
À “quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade, decepado
Entre os dentes segura a primavera.”
(Primavera nos Dentes, de Secos & Molhados)
— Eu vou fechar a porta, para de escrever. Disse ela.
— Peraí. Respondi sem olhar para seus olhos negros. Alguma coisa fora da sala chamava mais atenção.
— O que é?
— Tem alguém naquela janela, tá vendo? Apontei com o nariz, com medo de ser descoberto.
— Não, é a sombra de alguma coisa que largaram lá. Respondeu ela, sem dar muita atenção a minha preocupação.
— Não, é um rosto que tá olhando pra gente. Há quanto tempo tá lá?
— Para de ser neurótico. E foi tentando me empurrar pra escada.
— Não! Tem alguém ali. Insisti.
— Credo. Disse ela, se afastando de mim.
— Deixa eu me esconder. Estou ficando com medo. Minha nuca arrepiava como se um espírito estivesse atrás de mim.
— Eu é que tô com medo de você, tá loco. Coisa estranha… Você tem cada uma.
— Sobe essa escada e some. Disse eu, indignado. — Você tá me atrapalhando.
— Não! Você precisa descansar.
— Eu vou escrever mais um pouco. Afirmei categórico e calmamente.
— Para com isso, essa caneta já tá fervendo.
— É a intenção, me deixa.
— Vá dormir. Ela pedia já colocando os pés nos primeiros degraus.
— Não, eu preciso fechar essa página pelo menos.
— Vá rápido! Ela parecia uma mãe, às vezes.
— Ele ainda tá lá. Disse, voltando ao assunto que me preocupava.
— Não é ninguém, deixa disso.
— É alguém, sim.
— É nada!
— Mas tá rendendo uma história, né? Eu disse, com um sorrisinho no canto dos lábios.
— Desgraçado. Xingou, balançando a cabeça em sinal de desistência.
— Senhor das ilusões. Corrigi.
— Ilusão é a sua existência, seu alter-ego chinfrim. Essa porra não vai dar em nada! Explodiu, enquanto eu redobrava minha atenção no vulto.
— Vai, sim. Insisti, com um fio de esperança.
— Vai dar em doença crônica.
— Não encha!
— Vamos, seu nariz tá sangrando.
— Então, adeus. E fui definhando até a última despedida.
(Homero Gomes é escritor. Vive e trabalha em Curitiba. É editor do blogue Jamé Vu e colunista dos portais Página Cultural e Mundo Mundano. Contribuiu com dezenas de publicações nacionais, tais como Cult, Rascunho, Ficções, Germina Literatura, Cronópios e Rapa Dura. ‘A sombra e eu’, até hoje inédito, faz parte do livro de contos Sísifo Desatento (inédito), finalista do prêmio Sesc de Literatura, edição 2007)