Dedos de Prosa II

Desenho: Felipe Stefani

A SOMBRA E EU

Homero Gomes

 

À “quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade, decepado
Entre os dentes segura a primavera.”
(Primavera nos Dentes, de Secos & Molhados)

 

 

— Eu vou fechar a porta, para de escrever. Disse ela.

— Peraí. Respondi sem olhar para seus olhos negros. Alguma coisa fora da sala chamava mais atenção.

— O que é?

— Tem alguém naquela janela, tá vendo? Apontei com o nariz, com medo de ser descoberto.

— Não, é a sombra de alguma coisa que largaram lá. Respondeu ela, sem dar muita atenção a minha preocupação.

— Não, é um rosto que tá olhando pra gente. Há quanto tempo tá lá?

— Para de ser neurótico. E foi tentando me empurrar pra escada.

— Não! Tem alguém ali. Insisti.

— Credo. Disse ela, se afastando de mim.

— Deixa eu me esconder. Estou ficando com medo. Minha nuca arrepiava como se um espírito estivesse atrás de mim.

— Eu é que tô com medo de você, tá loco. Coisa estranha… Você tem cada uma.

— Sobe essa escada e some. Disse eu, indignado. — Você tá me atrapalhando.

— Não! Você precisa descansar.

— Eu vou escrever mais um pouco. Afirmei categórico e calmamente.

— Para com isso, essa caneta já tá fervendo.

— É a intenção, me deixa.

— Vá dormir. Ela pedia já colocando os pés nos primeiros degraus.

— Não, eu preciso fechar essa página pelo menos.

— Vá rápido! Ela parecia uma mãe, às vezes.

— Ele ainda tá lá. Disse, voltando ao assunto que me preocupava.

— Não é ninguém, deixa disso.

— É alguém, sim.

— É nada!

— Mas tá rendendo uma história, né? Eu disse, com um sorrisinho no canto dos lábios.

— Desgraçado. Xingou, balançando a cabeça em sinal de desistência.

— Senhor das ilusões. Corrigi.

— Ilusão é a sua existência, seu alter-ego chinfrim. Essa porra não vai dar em nada! Explodiu, enquanto eu redobrava minha atenção no vulto.

— Vai, sim. Insisti, com um fio de esperança.

— Vai dar em doença crônica.

— Não encha!

— Vamos, seu nariz tá sangrando.

— Então, adeus. E fui definhando até a última despedida.

 

 

(Homero Gomes é escritor. Vive e trabalha em Curitiba. É editor do blogue Jamé Vu e colunista dos portais Página Cultural e Mundo Mundano. Contribuiu com dezenas de publicações nacionais, tais como Cult, Rascunho, Ficções, Germina Literatura, Cronópios e Rapa Dura. ‘A sombra e eu’, até hoje inédito, faz parte do livro de contos Sísifo Desatento (inédito), finalista do prêmio Sesc de Literatura, edição 2007)

 

 

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