Dedos de Prosa III

Sérgio Tavares

 

Foto: Ozias Filho

 

Nelson e as flores

 

Deixe-me ao menos as flores que te emprestaram o perfume, pois agora, espalhadas pelo caminho, são como um sorriso teu que não me deixa passar com a minha dor, de modo a impedir que vás assim, magoada, bateando a porta e derrubando em mim a culpa que não é par de um ato tão leviano, quando te disseste, abraçado ao violão, que iria partir sem saber se voltaria, que não me quiseste mal, pois era carnaval, e tu riste, um tanto distraída cantarolaste meu samba, mas verdade é que, entre as estrofes, exaltavas a aurora de uma mágoa que não souberas esconder dos dias foliões, e quando voltei (veja, é claro que eu voltaria!) a encontrei pelos cantos, com os olhos rasos d’água, para me inundar com amargura e injustiça, dizendo que a partir de hoje eu era espinho em teu amor, que nosso jardim, ontem viçoso, secou, e eu, ainda confuso e embriagado, tentei afrouxar teu desprezo, alegando que espinho não machuca a flor, mas isto só serviu para aumentar tua raiva, chamando-me de cínico, rei vadio, que sempre guardaste teus sorrisos para mim, teu zelo, e o que eu te reservaste?, a revelação, logo no primeiro carnaval, que foi um erro ter juntado minha alma à tua, que és sol que não pode viver perto da lua, aí conseguiste me inflamar, pois o carnaval amo antes de ti, então repliquei que poderia sorrir para quem quiseste, e mesmo dizer que não me queria, mas não precisava me humilhar, pois nos olhos da mulher, teus olhos, eu sei quando ela quer abandonar o lar, e tu se calaste e, do caminho até porta, ouvi somente teus passos, o vaso com as nossas flores se despedaçar pelo chão e meu último rompante, um tolo ultimato que pregava que se me disseste adeus, não pensaste mais em mim, que eu ficaria com Deus.

Sei que a fé não consegue confortar o vazio do amor, mas tenho fé que tu voltes, pois as flores, embora agredidas, ainda conservam o lastro do teu perfume como a certeza de que não foste por completo. Sinto, no meu peito, que, mais alguns minutos, a porta vai abrir uma fresta dos teus olhos e tu vais entrar, catando os cacos e as pétalas, e assumir que tudo não passou de um mal entendido, que o sol há de brilhar mais uma vez a clara luz que chegará aos nossos corações, queimando, do mal, a semente e tornando o nosso amor eterno, sempre, novamente.

Sentado na beira da cama que é nossa e não minha, não posso aceitar que tudo se acabe neste dia de cinzas, marcado por sentimentos e costumes opostos ao que é a nossa vida, e sim o espelho do que fui antes de te descobrir, quando o sol me era raro e a luz negra do destino cruel iluminava meu teatro sem cor, onde eu desempenhava o papel de palhaço, um louco de amor.

Nestes dias sempre só, eu vivia procurando alguém que sofria como eu também, mas não conseguia achar ninguém, até que, naquela roda de samba, fingindo-me alegre, tocava meu violão, quando te vi, entre as cabrochas e as passistas, sozinha em um canto, desenhando em uma folha de papel de pão. Passei toda a noite acumulando coragem para falar contigo e, quando finalmente me aproximei, tu me recebeste com censura, pensando que o convite era de dança, mas o convite era de silêncio, e descemos até a praia onde sentamos na areia e deixamos que nossas tristezas se conhecessem.

Durante horas, foram só as nossas respirações miúdas se perdendo na estrondosa respiração do mar, então tu me perguntaste se eu carregava tanta dor no peito, por que o samba? E eu respondi que sempre soube esconder a minha mágoa, sem que me vissem com os olhos rasos d’água, fingindo-me alegre pro meu pranto ninguém ver e achando feliz os contentes, aqueles que sabiam sofrer. Nem a mágoa pode calar meu violão, eu disse, e tu me beijaste e, a partir deste instante, graças a Deus, minha vida mudou, quem me viu quem me vê, a tristeza acabou, pois contigo aprendi a sorrir. Escondeste o pranto de quem sofreu tanto e organizaste uma festa em mim, que comemoramos enlaçados, quietos, para não descompassar o batuque que ainda hipnotizava o morro. Na manhã seguinte, trouxe-te o desjejum e um buquê verde de rosas, que pediste para pôr em um vaso, como um pedido para que ficasses para sempre com o meu amor. E tu sorriste, ajeitara-te com sonolência e, cobrindo a nudez com o lençol, disseste:

O amor é como a flor, Nelson. Ele nasce e morre quando não se espera.

Sem braga, aproximei-me de teu ouvido e confessei:

Pode haver outra mulher tão carinhosa, mas para mim é apenas tu.

Nos dias que se passaram, construímos um amor tão duradouro quanto as flores que nunca perderam o viço. Agora caídas, penso o quão ingrata foste por não considerar ao menos o que elas representam. Se bem que, avaliando a frieza das tuas primeiras palavras, assalta-me uma suspeita de que tu usaste o carnaval como pretexto para se livrar de um amor que, para ti, nunca de fato existiu. Pesando o rigor dos teus protestos sobre um ato tão banal, sinto aflorar em mim o medo de que isto seja verdade e, inesperadamente, percebo uma lágrima descer pelo o meu rosto, anunciando o brotar do meu desgosto. Pois sempre fui bom para ti e, por ti, sem que soubeste, quase passei fome, apenas para honrar teu nome: o nome que te dei. Temo que, o princípio de flores, tenha me feito tão cego de amor que não percebi que eu era demais entre seus amores, e acabei tropeçando nos erros de uma mulher sem alma, que, no meu peito, abria uma ferida a sangrar.

Se assim for, sei que só a fé é que me trará consolação para tanta humilhação que viverei a suportar. Olho para o relógio: são duas da manhã. Contrariado espero por ti. Aguardando amanhecer o dia e findar minha alegria, imagino qual será o teu paradeiro, que até agora não voltou. Já mesmo nem sei se voltarás ou se me abandonaste de vez? A minha esperança está morrendo, e a saudade, no meu peito crescendo, é o meu coração que me diz que sem ti eu não serei feliz. Nada me resta, além da tristeza. Mas espere um pouco: não fui eu que te quiseste mal, foste tu que quiseste a mim. Posso ser um rei vadio, um poeta sem lei, porém nunca vivi em vão, fiz tantos amigos, muitos irmãos. Sempre plantei o bem, e, por que não iria colher o que mereço? A felicidade pode tardar, mas tem meu endereço. E, quando chegar, trará o samba: o desfile das campeãs, o último suspiro de um repique, um cavaquinho ao longe.

Levanto-me para fechar a porta, dizer-te adeus e esperar o próximo bloco atravessar, mas logo percebo que tudo não passa de ilusão. Pois, quando passo perto das flores, elas me dizem assim: vai, Nelson, que amanhã enfeitaremos o seu fim.

 

Nota do Autor:

Nelson Cavaquinho era mestre da poesia de botequim. Sempre nas rodas dos boêmios, pernoitando numa mesa acessada por uma soma de parceiros musicais, trazia a lume histórias de indivíduos à sombra de desilusões amorosos, ébrios, sustentando sobre a vida uma tonelada de pessimismo e de melancolia. Dizem que são de sua autoria mais de 400 composições, muitas das quais negociadas por uma ninharia ou usadas como vales para hospedagens em pensões baratas. Nascido no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, em outubro de 1911, era filho de um policial militar, rumo que tomou até ser sequestrado pela malandragem, pela comunidade da Mangueira, pelo samba. A princípio, tocava cavaquinho, depois abraçou o violão, que fazia soar com o uso de dois dedos. Também peculiar era a sua voz roufenha, que trazia naturalmente um senso lamuriento para suas letras desditosas. Gravou quatro discos próprios e foi regravado por artistas do quilate de Nara Leão, Elizeth Cardoso e Elis Regina. Morreu em fevereiro de 1986 como Nelson Antônio da Silva.

Esse conto-colagem é um tributo (certamente não o melhor, mas um honesto) montado com trechos das composições ‘A flor e o espinho’, ‘Juízo final’, ‘O bem e o mal’, ‘Mulher sem alma’, ‘Quando eu me chamar saudade’, ‘Luz negra’, ‘Pode sorrir’, ‘Rugas’, ‘Vou partir’, ’Duas horas da manhã’, ‘Palhaço’, ‘Amor que morreu’ e ‘Ninho desfeito’.

Viva Nelson Cavaquinho!

 

Sérgio Tavares é jornalista e escritor, autor de “Cavala” (Record, 2010), vencedor do Prêmio Sesc Nacional de Literatura. Também foi premiado no Concurso Literário da Fundação Escola do Serviço Público (Fesp/RJ) e tem textos publicados nas revistas “Cult”, “Arte e Letra: Estórias M”, e no jornal “Cândido”, entre outros. O livro de contos “Queda da própria altura” (Confraria do Vento, 2012) é sua obra mais recente.

 

 

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