Dedos de Prosa II

Andréia Carvalho

Foto: Luiz Navarro

chartis

 

mergulhei em tua mente como havias solicitado em prece antiga. não sonhava com asas, e brânquias esfareladas eram tudo que restavam de heranças do leito dos oceanos amnióticos. assim, cruzei-te no intercâmbio fluídico com a confiança que os líquidos entornam nos primeiros tecidos epiteliais. mórulas, gástrulas e diferenciações histológicas compreendiam-me e me doavam poderes espectrais. o fiz, digo-te, o contornei como um lago plácido em noites de pós-tempestade vulcânica – sorrateiramente. farelos, cascas intactas de fuligem contorcionista abriam caminhos cada vez mais gêmeos de um antigo mar vermelho aberto em brasa por façanhas bravias de cavaleiros enigmáticos.

como te caminhei. como te caminhei. léguas e submersões. eu aprendi a linguagem de anêmonas solitárias e suas tentaculares projeções efervescentes no pranto mais escuro do útero marinho.

tu não me sabias.

sempre dardejando fiapos de nuvens altas e leves. que tua missão terrena é sondar pluma e levitação aérea no carrossel das vagas brilhantes que tombam pelas falésias. no galope de unicórnios submarinos seguia um rastro que sabia teu intuito. onde gotejam pequeninas facetas de corais em formação. pulsantes, cordatas, fissuras pelas quais o céu tomba e se oculta e se revela crepúsculo depois aurora depois eclipse até que o raio cristalize uma passagem violeta entre galáxias acobreadas. tão ave, tão alva, tão ave, tão alva.

não me soube assim tão em fuga de águas. não percebi que uma chuva tão pura poderia ser azul devoluto no seio das terras. não me soube alada criatura.

meus tentáculos rizomas fibras e fertilidades não poderiam esvoaçar além do inferno aquático assombrado por seres tão desconhecidos. que me foram surpresas alcoviteiras sedentas de submundos. segui-as como se segue em vida a curva da tumba que é certeza de sonhos nunca interrompidos. pela suprema corte dos rios subterrâneos.

e pelo desejo de um mundo além de mundos, desviei de tua rota soberana, que me era redenção.

encontrei um mestre abnegado de paraísos flutuantes. grave como um desfiladeiro desenhado no centro de um campo claro de arrozais. olhos de chacal. veias de betume e carvão. assustador o fascínio desta gravidade que me sugava como se a sede fosse um cordão nos unindo pelo umbigo. nutrição estonteante. parasitas de nós, inventamos vórtices de sumidouros.

então me soubeste.

no tombo de um olhar ofegante em grimórios de revelação.

hermético. soube-me com teu conhecimento. mas não pude voltar. e não poderei jamais. vejo um afastamento cada vez mais profético entre tu, meu coração e tu, meu espírito. onde a epístola retumba nos corredores de sangue e febre, formulo um medo qualquer de face horrenda e harpia de astrais vênulas, arremesso o corpo etéreo e me deixo saciar nas águas redemoinhos que nada voam.

assim será, pela jornada zodiacal. escorpionídeos prateados caminham em salinas provocando ventos boreais. e a água move moinhos cada vez mais próximos das quedas milagrosas que mistificam desertos inóspitos.

tu continuas cintilando, coração mercurial. eu, astro e invisibilidade, mergulho bíblico no manto das imortalidades bizarras. tenho oceanos tridentes vestais. outras mentes portais.

Andréia Carvalho, autora dos livros A cortesã do infinito transparente (2011), Camafeu Escarlate (2012) e Grimório de Gavita (2014, no prelo), ambos publicados pela Lumme Editor. Participa do corpo editorial das revistas Zunái e Mallarmargens. Chartis é texto do livro “Grimório de Gavita”, que será publicado em 2014 pela Lumme Editor.

 

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *