Dedos de Prosa II

Foto: Juh Moraes

PROBLEMA DE LINGUAGEM

Regina M. A. Machado


Nada impede, responde a mãe, mas presta esclarecimento: o verde dos parques é para dar realce ao marrom. Marrom de quê? Marrom de onde? Do Tietê, de tudo. Cidade com pouco marrom não é cidade, é mata Atlântica; quer voltar aos tempos do descobrimento, poço de ignorância?

Zulmira Ribeiro Tavares, « Vinhetas com o Tio Paulista »

O telefone tocou na hora do almoço e ela atendeu na copa mesmo, foi por isso que todo o mundo entrou na conversa com a amiga francesa.

– Oi, Sandrine, que boa surpresa, você por aqui? … Quando é que vem me visitar?… Não vai ficar em São Paulo? Vai para onde?… Para o campo?!?

Os meninos começaram a rir e a caçoar.

– Pois é, você ouviu, né? O pessoal achou engraçado porque aqui ninguém diz isso. Existe a palavra, claro, mas não se usa nesse sentido. Usa o quê? Ééhhh….. acho que eu diria… para o interior?…

– Só se for para uma cidade do interior!

O papo continuou em francês e eles se desinteressaram. Quando ela desligou, um deles perguntou se a moça ia para alguma cidade.

– Não, ela não quer saber de cidade e na falta de coisa melhor, vai continuar dizendo campo mesmo.

– Campo fica com cara de tradução acadêmica.

– Como é que a gente pode dizer?

– Ela vai para alguma fazenda?

Também não era fazenda – ela tinha perguntado e a francesa disse que não estava interessada nem em plantação nem em criação de gado porque para ela isso era paisagem devastada. E o que ela mais queria era rio com mata preservada, muito passarinho, e para isso tinha que ter muita árvore, coisa que nunca tem bastante em fazenda.

– Isso também não, na fazenda do vovô tinha muito passarinho.

– É, sobretudo em gaiola…

– Menino, como você inventa! Você nem sequer conheceu a fazenda direito. Na beira do rio havia uma mata enorme, tinha até lobo-guará quando eu era pequena.

– Passarinho, então, era mato…

– Ô menino metido! Havia muito sanhaço nas mangueiras, e no pomar o tio Ademar caçava passarinho, lembra? Eu morria de pena quando via os coitadinhos, tão pequenininhos, sangrando no chão. E ninguém dizia nada, acho que era normal… nunca entendi muito bem.

– Pois eu achava bonito, ele tão elegante, com botas e roupa cáqui, de bigode e aquela espingarda reluzente…

– Caraca! As armas e os barões ornamentados com um peito varonil! Acho que prefiro os desejos bucólicos da amiga da titia… e então, qual é o programa dela?

– Bom, ela vai passear na floresta e vai se hospedar num hotel ecológico. O dono do hotel guia os hóspedes para ver, ouvir, fotografar os pássaros, descobrir plantas, essas coisas…

Além dos filhos, havia também os sobrinhos que estudavam perto e vinham almoçar na casa dela. Ela gostava de receber a família, sobretudo os mais jovens, de ouvir as histórias e dar risada com as conversas deles. A irmã também vinha às vezes, talvez para não esquecer dos almoços de domingo na casa da mãe, só que para os sobrinhos não adiantava marcar dia – eles passavam quando estavam pelo bairro ou então não vinham. Não dava mais para fazer como antes, a cidade era outra, muito maior.

– Daqui a pouco você vai dizer que ela vai passear no bosque enquanto seu lobo não vem…

– Pois é, eu também estava pensando nisso e não achei a palavra que queria. Floresta para mim lembra contos de Grimm, coisas traduzidas que a gente lia quando era criança. Ou então uma ideia-problema, como “floresta amazônica”, que fica tão longe que não é bem real.

– Para mim, bosque é que é uma palavra literária, desencarnada. Floresta é normal, aliás tem uma bem mais perto, a floresta da Tijuca…

– Mas essa é reconstituída. Depois que pelaram a montanha para plantar café, apareceu um inglês maluco que replantou tudo. Até o José de Alencar fala nisso…

– Então como é que fica? E se a gente disser que ela vai pro mato?

– Mato pra mim ficou como lugar de escravo fugido, vai bem com capitão do mato, esconderijo de bandido, não combina com a europeia em busca de natureza-pureza.

– Ninguém ainda falou em mata! Tem a mata Atlântica, as matas ciliares… e nisso se fala muito.

– Mas será que dá para dizer que alguém vai para a mata? Nunca ouvi isso.

– Achei! A gente podia dizer que ela vai para a roça!

– Combina menos ainda…

– Roça eu gosto, vai bem com caipira, biju, café com duas mãos, cambucu…

Sempre havia um ou outro dos mais velhos para ensinar alguma coisa aos seus adolescentes preguiçosos e ela bem que gostava. Se ousasse corrigir o que os filhos diziam, ou tentar trazer alguma informação nova, era revolta ou caçoada na certa. Vindo dos primos mais velhos, tudo passava macio, e, mesmo se houvesse discussão, era evidente que eles ouviam.

– Vocês sabiam que ele comprou um dicionário de caipirês?!

– Fui buscar socorro, figura! Meti a cara num mundo soterrado, nas nossas catacumbas, no nosso tesouro de piratas. Eu sou um universitário pasteurizado, só leio teoria traduzida e falo uma língua de merda, mas para ser um caniço pensante eu tenho que ter raiz. Paixão de raiz, sacomé?

– Tempo perdido, ô cientista! Essa menina não tem nem ideia do que você está querendo dizer. Ela agora quando fala parece que anda decifrando língua estrangeira, com essa mania de pronunciar tudo que está escrito. É besta mesmo!

Os outros aproveitaram para massacrar:

– Não é besta, pobrezinha. O problema é o tamanho da ignorância que é imenso, global…

– Ah-ha, ontem ouvi ela dizer que, de noite, ia estar assistindo todas as novelas…

– Quem não concorda com vocês é sempre uma besta, isso a gente já sabe. Mas com dicionário e tudo, ainda não vi o grande pesquisador dizer “nóis vai”…

– É, isso não dá. Mas para mim é uma outra maneira de falar, que não é a da minha tribo. Será que é errado? Não sei. Mas também não sei viver em floresta e moro em prédio. Verdade que tem gente que acha que essa é a única maneira civilizada de morar… E o pior é que cada vez mais gente mora assim. Assim como eu, aliás, mas nem por isso acho que é uma boa.

– É uma boa morte, isso sim… E se a gente não achou um jeito de falar do que a amiga da titia está procurando é porque floresta para nós é para ser derrubada, mata em beira de rio é desperdício, né? Pra quê, deixa só uma fitinha… não tem lugar na língua porque não tem lugar na terra.

– Caipira também é um nada, todo o mundo agora faz como a telespectadora ali, só acredita nessa linguagem desenraizada, sem nenhum caráter…

– A dela é uma espécie de melting pot raso, de feiticeira fashion victim…

– E eis que o inglês invade a linguagem da nossa kamikaze fundamentalista!…

Às vezes, esquentava. Havia os de esquerda, os da direita e os que planavam, depois vieram os apaixonados por ecologia e, por último, o sobrinho estudante de antropologia. Esse só falava em culturas ameaçadas, civilizações desaparecidas, e os outros só com a natureza; parecia um concurso para ver quem ia desaparecer primeiro, se eram as florestas e os bichos ou as danças e os sotaques… O único que gostava da tecnologia quanto-mais-melhor, era o filho do meio, bom de matemática, esperto e caladão, mas pegava na hora qualquer cochilo dos mais idealistas.

– E você aí, ô peregrino de bastão e pé no chão, esqueceu que descobriu tudo isso por causa da internet? E se quiser ir adiante nas pesquisas, vai ter que ler muita publicação em inglês…

– Cada um tem a internet que merece… e fala o inglês que pode.

– Tá bom, mas tá chato! Vamos voltar para o passeio da francesa, pelo menos estava engraçado.

– Por mim, ela pode ir cagar no mato.

– Pronto, engrossou. E eu daqui a pouco vou ter que ir. Tem café, tia?

– Tem, é claro! Já se viu faltar café nesta casa?

– … nesta herança direta dos latifundiários barões do império!…

– Mais respeito, menina, os nossos bisavós nunca foram barões, eram fazendeiros, sim, e sempre cuidaram da terra.

– Ora, mamãe, com a mão do gato, né? Que eu saiba eles nunca moraram na fazenda, trocaram os escravos pelos colonos e fizeram casarão na Paulista.

– Vocês dois, fiquem sabendo que a nossa família nunca nem chegou perto dessa fortuna que estão imaginando. E morou na fazenda sim, não trabalhava no eito, mas estava lá o tempo todo. Quem veio para a cidade, para um bairro bem mais modesto e sem casarão nem mansão, foram meus pais. E vieram para os filhos poderem estudar, seus ingratos!

– Quem pediu? Eu sonho é com uma casa de madeira, com rede na varanda, lampião de querosene e um céu com todas as constelações se atropelando de brilho…

– Ô cara, isso é sonho de citadino! Se você nunca tivesse saído de lá, ia sonhar é com a divina agitação desta megalópole.

– Coitado, nunca acampou, nunca saiu do asfalto, nunca transou debaixo da tenda…

– Coitado é filho de rato que nasce pelado no meio do mato!, gritou o primeiro, mas foi cortado por uma e logo duas vozes cantando em coro.

– “Quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou”…

– Assim não dá, todo o mundo berrando e cantando ao mesmo tempo vira bagunça.

– Voltemos à amiga, que é assunto neutro.

– Foi pro mato. Cadê o mato? O fogo queimou. Cadê o fogo? A água apagou…

– Cala a boca, papagaio de pirata!

– Não fale assim com seu primo! Quer sair da mesa?

– Mas ele não para de dizer besteira, ora!

– Besteira na sua boca é mato – cada coisa em seu lugar…

– Bom, tá na hora, vou puxar. Pena que vou sem saber para que raio de lugar vai a francesa. Depois você pergunta para ela?

– Não adianta, filho, ela vai me responder com um termo de lá das terras dela, que ela vai traduzir como puder. Vocês que gostam de andar no mato é que devem saber…  eu não ia nem no capinzal, para não sujar a roupa nem o sapatinho de verniz, então não dá para saber o nome de coisas que nunca fiz.

– Eu também vou indo. Mas não fique triste, minha tia, a gente gosta de você assim mesmo, bem sinhazinha de sala e de piano. E até a próxima tertúlia, bandalhos.

(Regina M. A. Machado mora no exterior há muitos anos e, para ela, o Brasil visto de longe começou a mostrar tantas e tão várias cores, sons, gentes e falares, que ela não teve outro jeito senão tentar entender para se entender)

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4 Comentários

  1. Muito bem colocado. Uma conversa atual com pinceladas de melancolia por um passado que não volta mais. Como sempre a Regina deu seu recado certeiro.

  2. Muito legal o conto !
    Um papo atual e ao mesmo tempo ,faz a gente voltar no tempo, lá nas cidades do interior do Paraná…ou ..no mato…ou no campo!!?
    Valeu Regina!
    Sergio Abu

  3. Autocritica: pus entre aspas “nos vai” mas nao “ia estar assistindo todas as novelas”.
    Por que? ambos sao desvios da norma, entao deviam ser realçados da mesma maneira enquanto tais.
    A diferença é que um é tradicionalmente ligado ao “inculto oficial”, o velho Jeca denegrido desde Monteiro Lobato (que no entanto dizia, um pouco como Flaubert, “o Jeca sou eu”); o outro é macaqueaçao de um inglês invasivo e mal apreendido, mas que provém de sacoleiros anglofonos, logo, com perfume de “produto importado”, o que sempre soa bem entre nos, eternos “exilados culturais”, retomando palavras de Mario de Andrade.
    Enfim, esta releitura tardia me leva a refletir sobre a impossibilidade de escapar totalmente à incultura de massa.

  4. Regina, com este conto você marca presença no cenário literário como mestra na difícil arte do dialogismo. Parabéns!

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