Dedos de Prosa II

Tadeu Sarmento

 

Victor H. Azevedo

Desenho: Victor H. Azevedo

 

Flores no microondas       

 

O que mais gosto é que você parece ter guardado um segredo durante todo o dia só para me contar. No fundo sei não ser verdade. O fato é que abro tuas pernas como facas uma ostra. Isso é real. Mas o real nem sempre é melhor. São os mal-entendidos que colorem o mundo. O melhor é depois conversarmos na janela do nono andar, fumando, olhando os (daqui) pequenos carros na rua. Da janela sinto o mundo recolhendo acontecimentos que nos atingiriam em eco caso estivéssemos lá embaixo. Mas, não estamos. Saio do teu corpo como um prazer satisfeito ou uma doença. Dentro você é macia pista de gelo quente. Fora, todo este teatro à disposição. A luz é a continuação de outro mundo, refletido em teus cabelos. O segredo que você tanto guardou durante o dia é sempre a mesma história, com pequenas alterações. Surpreendo teus lapsos como às vezes a vista surpreende a mão em gesto automático. Mas, sempre finjo não notar. Gosto de ouvi-la, desse hálito golpeado pela hortelã do teu cigarro mentolado. Por exemplo: a cada vez você troca o nome dos mortos que inventa. Por mim tudo bem. Nomes de mortos não são mais úteis. Só acho engraçado esse esforço de encenação. É como se eu me importasse. Finjo me importar. Bato à tua porta porque estou cansado. Entro carregando nas costas meu próprio corpo. A mim bastaria que você apagasse os incensos da sala. Eles fedem a pétalas de plástico queimado. Você se deixa entender; eu me deixo escutar. Com você o sexo sempre vem acompanhado pela máscara da compaixão. Teus pais são indianos e te prometeram em casamento a um velho de setenta anos. Por isso você fugiu de casa e está aqui, vivendo essa vida. Mas, quantos nomes diferentes teus pais têm? Eles já morreram mesmo, e de tantas formas assim? Teus lábios são lâminas líquidas mordendo pequenas peras de luz. Percebi que quando você mente esfrega o pulso com o nó dos dedos. Mas, quem não mente? A mentira é a principal função da linguagem. Só que poucos esfregam o pulso como você. Quando você se espreguiça lembra um anjo abrindo as asas. Outro dia você disse que eu era apático. É que gosto de ficar quieto, silencioso, observando você. Tenho quatrocentos adjetivos diferentes para falar das tuas costas. De qualquer modo, tomei como um elogio. Nossas vidas são tão minúsculas. Somos tão indefesos, tão pequenos, que tenho vontade de rir. Gosto das suas estórias. São segredos escritos a lápis. Por isso você os apaga e os reescreve toda vez que eu chego. E eu sempre chego, carregando meu cadáver nas costas. Retirando o peso da verdade, os corpos ficam mais gratificados, menos constrangidos. Ficam menores, mais do que já são. Vivemos a vida dentro de um sonho. Às vezes, quando estamos na janela, sinto um insuportável desejo de saltar.

***

Aeroportos de papel de carta

Conheço cidades distantes através das malas esquecidas no aeroporto. Não são muitas, nem é todo dia que as encontro. O ritual é tão estranho quanto gratuito. Geralmente sento em um dos bares próximos à pista de decolagem, para beber embalado pela tristeza do som das turbinas, admirando, sem entusiasmo, a indiscreta velocidade dos pássaros pesados, as asas de cor cinza, metálicas. Depois, atravesso a rua como se fosse viajar. Outra tarde, dividi a mesa de um desses bares com Diego M., ator, escritor brilhante, biógrafo de índios assassinos, decidido a embarcar atrás de uma harpista francesa que, segundo ele, cheirava bem na pele de madrepérola, encimada por olhos mansos (cor de rins). Fique longe do amor e dos aeroportos, aconselhei, dessa combinação explosiva que seduz a alma dos ladrões, pintores, imbecis, palhaços descalços. O amor não deve nunca embarcar. Nunca. A curva do sol refletia nos copos um sorriso de luz quando eu disse: no dia em que os turcos tomaram Constantinopla derreteram os sinos da cidade para fabricar munição. De modo que o melhor é esperar em casa, sentado, a bala turca vir ferir de vez seu coração de puta, que decidir ouvir de perto a sacra música das catedrais. As malas, Diego, procure as malas com rodinhas nos saguões. Seus donos são descuidados. Abra-as, sinta o cheiro de vitrine das roupas amassadas, o odor gordo da fumaça dos carros impregnando as gravatas, leia os tíquetes de estacionamento que falam sobre esquinas desconhecidas, descubra assim as ruas dessa cidade de origem, proteja-se. Um erro convertido em amor. Não negocie sua alma por isso. Aprecie os aeroportos de longe, as delgadas aeromoças em uniformes azuis, esses patins rosa que giram sozinhos na esteira rolante, ou o denso cheiro desse plástico que brilha como ouro falso. Da espessa vegetação dos números coloridos calculando fusos horários aprenda a gostar desse sentimento de que nada dura até o fim da curvatura dos gráficos. Pois o amor acaba porque tudo acaba um dia. O amor sai na urina, entre os cristais da cerveja que tomamos agora, um brinde. De resto, mulheres são cruéis quando é você o estrangeiro. São muros cercando o incêndio brilhante. Se Henry Miller tivesse vivido na era dos aviões não teria ido a Paris atrás de suas bonecas vazias. De navio, teve tempo suficiente para se entusiasmar e arrepender-se, longe da enjoada sensação de primavera de tudo o que se movimenta rápido. Anaïs Nin, afinal, era só uma ninfomaníaca com curso de datilografia e, segundo Artaud, tinha um péssimo gosto para calcinhas. O amor não servirá de abrigo antiaéreo caso a bomba imploda da caserna. Ele acabará um dia, na sala de embarque ou desembarque, pois esse tipo de amor se apaixona por si mesmo, bebe de suas unhas o próprio futuro que não terá. É a estrela dos cansados, farol dos cegos, cartaz de filmes castigado pela chuva. Fique longe desse tipo de amor. Se possível, de qualquer tipo de amor. Fique longe de mulheres brancas, francesas, com sotaques estranhos, traços orientais de estátua. São anjos, mas usam coturno. E usarão os coturnos, quando você menos esperar. De modo que não é possível amar uma mulher para depois amar a cidade em que ela vive. Cidades distantes costumam enforcar os invasores. Melhor manter-se em pé, atrás das janelas. Sobretudo manter distância dos lugares onde poderia ter sido feliz. Não seja feliz. Não fará diferença alguma. Em breve estaremos todos mortos.

***

Subtração

Eu sempre vou te querer. Sempre. Quando ninguém mais te quiser, eu vou. Mesmo depois de você ficar velha, curvada, lenta, bem gasta. Quando ninguém mais te desejar, eu irei: desejá-la, querê-la tanto. Mesmo se você engordar, ou emagrecer demais, ou cortar as unhas até a pele sangrar. E quando a ninguém mais for suportável tua tristeza, teu humor negro, teu pessimismo, a mim será, pois, quando ninguém mais suportar ouvi-la falar de Thomas Bernhard, eu vou querer te ouvir falar de Thomas Bernhard. E mesmo se todos se cansarem dos teus longos silêncios eu não me cansarei, até por ser durante teus longos silêncios que eu escrevo. Porque quando você fala eu prefiro o som da tua voz ao dos meus dedos no teclado. Porque escrever é sempre dizer que você não está, ou está, mas calada. Que o teu silêncio é a minha imaginação. Então quando todos cansarem de ti, dos teus dentes manchados, tortos, afiados, do teu hálito de nicotina, das tuas mãos gesticulando nervosas, eu não me cansarei nunca. Mesmo quando teus seios caírem, teu rosto enrugar, tua memória falhar, teus pulmões virarem esponja. Quando você for traída, esquecida, humilhada, trocada por uma mulher mais jovem ou mais fútil, eu vou te querer ainda mais, e para nunca te trair, te esquecer, te humilhar, te trocar. Quando você estiver sem dinheiro, sem emprego, sem cigarros, esperança. Quando pouco ou nada sobrar de você, eu ainda vou querer esse pouco, esse nada, esse tudo que se puder raspar do prato raso dos teus sonhos. Sim, mesmo quando teu gato envelhecer, e passar a dormir dezoito horas por dia, e você se sentir sozinha sem ele, eu vou estar sempre acordado para você. Até mesmo se você tiver adquirido manias, tiques, doenças, dívidas, varizes, joanetes, verrugas, manchas na coxa. Pois, quando tuas tatuagens forem se apagando aos poucos e deformando-se conforme tua pele for enrugando, ainda assim gostarei delas, quererei vê-las. Digo: depois que o sexo (gás do pânico) já não for mais tão importante, e tudo for esse imenso vazio negro do desejo saciado. Sim. E depois de ninguém mais suportar teu bruxismo, tuas bebedeiras, teu choro, tuas olheiras, tuas cólicas, eu te pegarei pelos braços e te darei banho, e limparei teu vômito, e te deitarei na cama, e velarei teu sono por toda a noite. Enquanto eu estiver aqui eu estarei sempre aqui. Porque aprendi coisas novas para te contar. Que agora sei onde as modelos de Klimt enfiavam os dedos enquanto ele as pintava. Descobri hoje. Mas isso eu não vou te contar agora. Eu sempre vou te querer. Sempre. Mesmo que o amor não signifique mais nada para mim. Eu sempre vou te querer pelo simples fato de ser impossível para mim que eu não te queira. É impossível. Pois quando estou na rua e alguém me pergunta que horas são eu sempre respondo que é a hora certa. E sempre é a hora certa. Sempre será a hora certa. Sempre. Sempre. Sempre.

 

Tadeu Sarmento nasceu no Recife, safra de 1977. É autor dos livros “Breves Fraturas Portáteis” (Fina-Flor Editora, 2005) e “Paisagens com Ideias Fixas” (Bartlebee, 2012). Em 2014 foi um dos vencedores do II Prêmio Pernambuco de Literatura, com o romance “Associação Robert Walser para sósias anônimos” (Cepe Editora, 2015). Defende trincheiras indefensáveis no Visões de Ezequiel e despejou entulhos literários no Lontra Hiperbórea. As três narrativas acima integram o inédito “Sete Palmos Debaixo do Céu”.

 

Clique para imprimir.

2 Comentários

  1. Três bons textos num dia friinho , raro no Rio, é programa agradável, sem dúvida. A trinca toda me agrada, mas o segundo me deu vontade de visitar aeroportos, remexer malas de desconhecidos, descobrindo um pouco de gente estranha, como nos conta o autor, em seu texto de qualidade. Obrigada pelo presente em tarde outonal.
    Maria Lindgren

  2. O conto é um dos mais requintados meios de abordagem de criação que o escritor se depara. Os elementos estratégicos da sua montagem são importantes e necessários para a finalização do mesmo. Convivi e participei de edições com contistas excelentes entre eles J.J. Veiga. Seria importante ter uma coletânea de bons contos inéditos com diferenciados estilos. Editar é difícil, porem quando há um objetivo literário nada é impossível. Quanto aos seus contos gostei de lê-los, depercia@gmail.com http:/blogdepercia.blogspot.com
    Abraço
    Vicente de Percia

Trackbacks/Pingbacks

  1. Diversos afins | Território do lápis - […] O dia das estreias. […]

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *